O TEATRO NO BRASIL ESTÁ POLITICAMENTE DESPERTO
Dorothea Marcus (Alemanha), de Porto Alegre, 30/06/2017
Crítica alemã Dorothea Marcus comenta montagens que Alexandre Dill e Camilo de Lélis criaram para o texto "As trevas risíveis", de Wolfram Lotz
Projeto TRANSIT propôs a Alexandre Dill e a Camilo de Lélis levassem à cena independentemente suas visões da obra de Lotz. Crédito: Goethe-Institut

O papagaio foi para a panela

"Fora Temer" está pichado nos bancos de praças e nas paredes dos prédios em Porto Alegre. É o grito entoado no meio das apresentações de teatro pelos espectadores, que escrevem a frase numa faixa desenrolada pelo ator Dinho Lima Flor ao final da peça Ledores no breu.

Em Brasília, o presidente Michel Temer, que há um ano articulou o golpe de justificativas frágeis que depôs a socialista Dilma Rousseff, colocou o exército nas ruas contra manifestantes, embora esteja envolvido até o pescoço em escândalos de corrupção. Uma de suas primeiras ações ao assumir o posto foi tentar extinguir o Ministério da Cultura, o que foi evitado graças a protestos. Agora, sua própria deposição parece ser apenas uma questão de tempo, pois mesmo a populista Rede Globo, o maior império de comunicação do Brasil, lhe deu as costas.

Em As trevas ridículas, montagem de Alexandre Dill para o texto As Trevas Risíveis, do alemão Wolfram Lotz, um papagaio (interpretado por um ator com uma estola vermelha de penas) repete o noticiário sensacionalista da TV Globo. Ao final, diz "Fora", ao que o público responde “Temer”.

As trevas risíveis, de Wolfram Lotz, é uma reescritura do romance Coração das trevas, de Joseph Conrad, que trata do horror da colonização. Mas também faz o acerto de contas com a intervenção armada da Alemanha no Afeganistão e com os clichês alemães sobre regiões conflagradas distantes. Ao mesmo tempo, o texto parece também uma viagem à selva interior do explorador europeu neocolonial.

O que faz este texto dramático alemão nos palcos de Porto Alegre, a cidade de ares europeus que é a capital do Rio Grande do Sul, atingida nos últimos dias por chuvas torrenciais? A explicação é o projeto Transit, que permitiu que dois encenadores de Porto Alegre encenassem independentemente o texto de Lotz. As Trevas Ridículas e Nas Sombras do Coração (dirigida por Camilo de Lélis) estrearam durante o Festival Palco Giratório SESC Porto Alegre, evento que em 12 anos tornou-se uma das mais importantes plataformas de conexão nacional.

O projeto e o financiamento da dupla montagem R$ 15 mil (para cada peça) foram do Goethe-Institut (GI) Porto Alegre, que se constitui também em importante espaço para encenações durante o festival. “Dois diretores montando a mesma peça é algo que nunca ocorreu em todo o Brasil”, segundo a diretora do instituto, Marina Ludemann.

Devastações da globalização

"Trata-se sobretudo de uma peça [As trevas ridículas] sobre as devastações da globalização. No Brasil, diferentemente da maioria dos lugares, essa destruição está exposta à luz do dia”, conta Alexandre Dill em seu local de ensaios instalado na Usina do Gasômetro, prédio que abrigava uma antiga termelétrica à beira do lago Guaíba, que banha Porto Alegre. Dentro de poucos dias, a Usina será fechada para reformas, com prazo de reabertura indefinido. Por toda a volta podem ser vistos baldes vermelhos para coletar a água da chuva que vaza pelo teto. Também aqui, a mesma pichação: “Fora Temer”.

Dill faz parte da nova geração de talentosos diretores. Em 2016, ele participou como convidado do fórum internacional do Theater­treffen, em Berlim. Entre suas montagens, Medeamaterial, de Heiner Müller, e A noite árabe, de Schimmelpfennig. Sua trupe, o Grupojogo, existe há dez anos e conta com aproximadamente 15 membros. O Grupojogo se sustenta a partir de crowdfunding e de leis de incentivo, que permitem que empresas deduzam valor doado de seus impostos devidos. A receita mensal do coletivo está por volta de R$ 1,6 mil (cerca de 400 euros).

Teatro brasileiro discute situação política com emergência

Em As trevas ridículas, Dill transporta o Hindukusch das selvas para um contêiner como um daqueles que está instalado na frente da Usina do Gasômetro. É no contêiner, o mais genuíno símbolo da globalização, associado pelos europeus com refugiados e com pirataria, que surge o pirata somali Ultimo Pussi. Na encenação de Dill, Ultimo é um branco com um agasalho Adidas falsificado, identificável como um daqueles vendedores ambulantes onipresentes nas ruas de Porto Alegre e que fazem de tudo para se igualar aos jovens de classe média, fascinados por marcas famosas. Seu monólogo inicial é tocante e emocionado, ao som do apito de navios e dos gritos de gaivotas executados ao vivo, até ser reprimido autoritariamente pelo Primeiro-Sargento Pellner.

Pellner (Frederico Vittola, na foto à esquerda, crédito de Pedro Mendes), que tem a missão de seguir o rastro do enlouquecido Deutinger, usa o corte de cabelo e bigodes como os de Hitler, exibindo o peito nu de colonizador, numa referência ao deputado federal Jair Bolsonaro, um fascista que incita abertamente ao ódio contra negros e homossexuais e que supostamente tem chances de tornar-se o próximo presidente do Brasil.

Sair Sozinha? Melhor não

"Nós carregamos os efeitos da colonização numa única sociedade. Em poucos lugares do mundo existe uma diferença tão grande entre ricos e pobres como aqui", diz Dill. Isso também é visível em Porto Alegre: ainda que o estado do Rio Grande do Sul esteja entre as regiões mais ricas do país, pessoas sem-teto dormem em longas fileiras sob construções de papelão encharcadas nas ruas da cidade. Sair sozinha à noite é desaconselhável. Há poucos dias, mais uma vez bandidos armados saltaram de um carro para assaltar mulheres que esperavam táxi em frente ao Goethe-Institut depois de assistirem ao teatro.

A peça de Lotz, na leitura de Dill, é uma análise das causas internas da pobreza em um país em que bilionários corruptos instalados no poder são surdos às necessidades diárias da população.

O premiado diretor Camilo de Lélis, aproximadamente vinte anos mais velho que Dill, lançou mão de outra abordagem. Ele também tem uma preferência por peças alemãs, já tendo montado Tankred Dorst, Achternbusch e Schimmelpfennig. Sua encenação para o texto de Lotz foi batizada de Nas sombras do coração. Entre o palco e a plateia, foi criado um rio de sacos de lixo. Ultimo, o pirata somali, é interpretado, entre tonéis metálicos, pela atriz Denizeli Cardoso, que com voz quente e volumosa entoa em determinado momento o hino-clichê da África: The lion sleeps tonight.

Debate sobre as montagens

O fato de colocar uma atriz negra para viver o papel de Ultimo provocou um debate apaixonado durante a mesa-redonda realizada alguns dias depois da estreia de Nas sombras do Coração, dentro da programação do Transit. É legítimo fazer com que o "pobre somali" seja interpretado por um negro? Isso não é uma confirmação do lugar comum “negro = pobre”, que Wolfram Lotz conscientemente coloca em questão em seu texto? Na Alemanha nunca foi escalado um ator negro para o papel (na foto à direita, Denizeli Cardoso em foto de Gerson de Oliveira).

Muitas coisas são exageradamente explícitas na montagem de Camilo de Lélis, o que não beneficia o texto recheado de referências sutis e irônicas. Por um lado, a peça critica a exploração - e por outro lado faz uma caricatura do pensamento maniqueísta a respeito da atribuição simplista de papéis de vítima e agressor entre a Europa e os "países em desenvolvimento". Por exemplo, ao depravado pastor, que Pellner e seu ajudante Dorsch encontram na viagem, Camilo de Lélis coloca prostitutas negras – quase todas homens vestidos de mulheres - fazendo lascivos movimentos de língua, como se a alusão ao turismo sexual não fosse clara o suficiente no texto.

No final da peça, no papel de Deutinger, surge um velho homem branco sentado num trono selvagem, que é, ao mesmo tempo, um vaso sanitário. Sua descrição de uma viagem ao próprio ânus, que no texto de Lotz é uma investigação do próprio sentimento de culpa europeu, cai assim no ridículo.

O consumo de carne 

Mas alguns lampejos surreais tornam também a montagem de Camilo de Lélis interessante. O papagaio, que é também o animal-símbolo do Brasil, é um pássaro de mentira que vai imediatamente parar na panela, enquanto Dorsch e Pellner passam o tempo inteiro comendo. "Eu quero criar imagens da classe dos colonizadores do Brasil, que mostrem como eles mesmos se canibalizam", relata Camilo de Lélis, numa referência ao fato de o Brasil ser o segundo maior consumidor de carne do mundo e conhecido por arruinar o próprio meio ambiente.

A intensidade com que o teatro brasileiro debate a situação política atual pôde ser vista também em outros dias do festival Palco Giratório. Na perturbadora encenação O quadro de todos juntos, do grupo Pigmalião Escultura que Mexe, de Belo Horizonte, uma família de porcos-bonecos simula flashes de abuso e violência.

Na intervenção urbana Ruínas de anjos, o grupo baiano A outra companhia de teatro levanta a voz para reclamar da impossibilidade de se pisar no espaço público à noite. Alguns metros adiante, debaixo de uma elevada, podiam ser vistos viciados em crack.

 

Dorothea Marcus trabalha como jornalista cultural freelancer desde 1999  para o jornal "taz", para os canais de rádio públicos Deutschlandfunk e WDR, para a revista "Theater Heute" e para o portal on-line "nachtkritik.de ", entre outros. Foi editora-chefe da extinta revista de teatro "aKT". É professora universitária em  Colónia, Alemanha. Atuou como Jurada de importantes festivais de teatro na Alemanha, entre eles Theatertreffen Berlin 2017. A viagem da autora para acompanhar as estreias dos espetáculos do projeto TRANSIT foi a convite do Goethe-Institut Porto Alegre.

 

Essa crítica foi publicada originalmente no jornal taz. die tageszeitung, disponível online: http://www.taz.de/!5416456/