VERDE (IN)TENSO
Renato Mendonça (RS), em Porto Alegre, 22/09/2016
Espetáculo do GEDA Cia de Dança Contemporânea coloca em cena tensões da sociedade gaúcha
Vento MInuano se torna também é protagonista na montagem "Verde (In)Tenso". Fotos de Adriana Marchiori

Notícias da Terra do Quase

A coreógrafa e diretora Maria Waleska Van Helden devia saber a encrenca que a aguardava quando decidiu trazer o universo pampiano para o palco, no espetáculo de dança Verde (in)Tenso. Isso é garantia de, como se diz no Sul, peleia braba, mais feia que briga de foice no escuro. Uma das falas ouvida em off na montagem ajuda a entender tanta beligerância: o Rio Grande do Sul é o lugar do “quase”. Quase fora do Brasil, quase independente, quase platino. E longe demais das capitais, com dizia outro sul-rio-grandense.

Agrava o “causo” o fato de existirem muitos gaúchos. O mais conhecido é o tal centauro dos pampas, idealização épica de um taura (sujeito valente) viril, mulherengo, sentimental, machista e divertido. Mas temos, para citar alguns, o gaúcho açoriano, o gaúcho que descende de colonos italianos e alemães, o gaúcho a pé gerado pelo êxodo rural e o gaúcho do povo (cidade), o que sorve orgulhoso seu chimarrão no Brique da Redenção, no principal parque de Porto Alegre. Somos um povo de faca na bota talvez porque o Estado tenha servido de palco para quase infindáveis batalhas, em disputa por terras e de ideais.

Waleska, idealizadora e ex-coordenadora do prestigiado festival Dança Alegre Alegrete, certamente é consciente dessa variedade e dessas contradições. Alegrete, onde ela viveu por anos até se transferir em 2002 para Porto Alegre, fica a 500 quilômetros da capital, assentada numa região de Pampa, ambiente marcado por planuras, escassa vegetação, varrida ocasionalmente pelo vento Minuano. E é uma cidade que testemunha essa tensão entre o rural e o urbano, a tradição e a nova informação.

No jogo de palavras que batiza sua criação – Verde (In)Tenso – já se antecipa o grau de tensão que Waleska identifica na aparente calma dos horizontes desimpedidos do Pampa, e que se espraia pela silhueta recortada da urbe gaúcha. Ao longo dos 55 minutos de espetáculo da GEDA Cia de Dança Contemporânea, evocam-se a aspereza na relação do homem e da mulher, o tratamento impiedoso com os animais, a cultura machista, a desumanização. Pela urgência da denúncia, um equilíbrio que contemplasse o que seriam traços positivos do gaúcho ficam de lado. O que importa são as tensões.

Destaco a iniciativa do GEDA de se aproximar de tema tão espinhoso, coincidentemente mostrando seu espetáculo às vésperas da Revolução Farroupilha. Identifico também algumas cenas de impressionante impacto estético, mas me ressenti de estrutura que costurasse os diversos momentos de Verde (In)Tenso, impulsionando a montagem além da justaposição de cenas. Em um paralelo com o objeto de sua inspiração, Verde (In)Tenso também quase atinge suas intenções.

Primeiro o papel da palavra e do som no espetáculo. No início, os seis bailarinos dão uma amostra do potencial das vozes: num crescendo, sugerem o aboio dos peões tocando o gado, para desaguarem numa gostosa gargalhada coletiva de galpão. São sons de campanha, ríspidos, explosivos, e com um enorme potencial de definirem climas e de marcarem ritmos. A opção no resto de Verde (In)Tenso, entretanto, é pela inserção de alguns textos ditos em off com o propósito, talvez, de permitir melhor acesso ao que está em cena a plateias que não sejam gaúchas.

Uma coreografia com boleadeira me remeteu a um desafio próprio de espetáculo que lida com tradição e que é mostrado a uma plateia familiarizada com essa tradição. Nós, gaúchos, naturalmente convivemos com elementos como a chula, o pezinho ou mesmo danças com boleadeiras. DE que maneira espetáculos com a pretensão além da evocação de costumes de uma comunidadese pode agregar esses elementos? Penso que como elemento de humor, ou em uma execução de excelência, ou ainda como elemento dramático. Mas, em todas essas situações, com rigor técnico.

Há cenas em que as tensões ocupam de fato nossa emoção e nosso imaginário. Após marchar pelo palco trajando botas plásticas brancas características de matadouros industriais, um dos bailarinos usa tesoura de tosquia para retalhar a malha de uma bailarina, que está encolhida em posição fetal no chão. A exposição e o desamparo da mulher/ovelha nua e desprotegida são chocantes. Outra cena remete ao Minuano: um tecido imenso é agitado sobre o palco, ao som de vozes fantasmagóricas. Parece que o vento está incorporado ao corpo do gaúcho. Parece ondas de mato encarpeladas pelo vento. É a tradução dinâmica do medo que a amplidão inspira.

A conclusão do espetáculo é a materialização do quase. Os bailarinos recobrem o palco com erva-mate, causando forte impressão visual e olfativa. Depois se deitam, traçam círculos concêntricos em torno de si, confinados a focos de luz, enquanto a voz de Vitor Ramil entoa Loucos de Cara, canção dele e de Kleiton Ramil, que se caracteriza por letra congestionada de referências e de informação e que se inicia com os versos “Vem, anda comigo, vamos sair pelo mundo”.

Vamos, gaúchos, sair pelo mundo? Por instantes, parece que sim. Os bailarinos arremessam punhados de erva-mate como se libertando, simulam o bater de asas de pássaros prestes a alçar voo. Mas depois se levantam e retornam aparentemente conformados para o fundo do palco, de onde saíram no início do espetáculo. Foi quase.