FETEN
Michele Rolim (RS) e Renan Ji (RJ), Gijón (Espanha), 16/06/2024
Espetáculos para a infância e a juventude são destaques em Feira Internacional de Artes Cênicas na Espanha
An-ki, da Cia. Ortiga, nos convida a imergir numa tenda que se assemelha a uma espécie de labirinto Foto: Pablo Albalá

FETEN: notas de viagem

A Feria Internacional de Artes Escénicas para niños, niñas e familias (FETEN), na sua edição de 2024, reuniu muitos artistas e companhias, e também diversas propostas teatrais para a infância e a juventude - desde homenagens inspiradas na tradição cultural europeia até propostas que dialogam com questões candentes da geopolítica contemporânea. No primeiro caso, temos, por exemplo, o espetáculo de abertura da feira, Los Pfeiffer, da espanhola Troupe Malabó, em que a força da música erudita resiste em meio a um mundo tecnocrático digital. Já no segundo caso, diversas peças espanholas trataram das consequências nefastas do colonialismo, como a questão dos refugiados e da imigração, em peças como Nómada (El perro azul teatro), El cielo de Sefarad (Claroscuro teatro) e Amal (Companyia de Comediants la Baldufa SCCL). 

Dentro da perspectiva do pensamento decolonial, destacamos An-ki (Cia. Ortiga), premiado na categoria de melhor espetáculo no Prêmio Feten de 2024. O teatro-experiência de An-ki, traz uma reflexão potente e lúdica sobre o meio ambiente e a ação predatória do colonialismo ontem e hoje. 

A peça da Cia. Ortiga (de Cataluña, Espanha) nos convida a imergir numa tenda que se assemelha a uma espécie de labirinto. Somos conduzidos pelos atores em três grupos, cada qual perfazendo uma sequência diferente de instalações, nas quais somos levados a conhecer a história do povoado da menina Adja. Além de refletir sobre a relação do homem com a natureza, é fundamental também resistir à ameaça constante dos desmatadores.

Em An-ki, o macro e o micro se misturam: ora somos gigantes andando por entre nuvens, ora acompanhamos narrativas contadas por meio de pequeníssimos objetos. Na nossa pequenez, escondemos uma minúscula semente para resistir à sanha de colonizadores gigantes e grotescos. An-ki é uma árvore ao mesmo tempo pequena e grande: protegida por Adja, ela é a última que resiste sozinha à grande devastação ambiental provocada pela exploração econômica dos colonizadores. 

A Cia. Ortiga nos deixa uma provocação: quando todas as árvores forem derrubadas, quem poderá guardar a semente da resistência?


Guardando sementes

Se guardar sementes é uma forma de resistência, o esforço de memória proposto pelo espetáculo Una rueda que da vueltas(entre molinos de agua y otras cosas en peligro de extinción), do projeto Almealera (de Castilla y León, Espanha) pode ser visto como uma semente que resgata e mantém viva a tradição de antigos povoados espanhóis. Levando à cena depoimentos de antigos moleiros de Ávila, recuperando memórias pessoais e, principalmente, coletivas, Laura Santos formula uma arrojada proposta de teatro documentário, exigindo um público jovem mais maduro; porém, isso não significa que o trabalho abra mão do encantamento e da imaginação, uma vez que utiliza o potencial cênico de elementos naturais como água, terra, palha, grãos e farinha. O refinado manejo desses recursos no palco conferiu a Laura Santos o prêmio de melhor intérprete no FETEN 2024.

Nesse esforço de rememoração, o espetáculo nos leva para falares e dialetos arcaicos, que foram bem pouco acessíveis a brasileiros como nós. Porém, mesmo assim, é surpreendente como pudemos perceber a proposta sensível de Una rueda que da vueltas (entre molinos de agua y otras cosas en peligro de extinción), que busca reacender o uso das antigas palavras que pertencem ao universo dos moinhos, recuperando não só uma forma antiga de fazer pão, mas as raízes de todo um modo de vida.

Falando de pão e tradição, assistimos a um trabalho bastante diferente do anterior em termos dramatúrgicos e cênicos, mas que ainda assim remetem ao universo simbólico e prático do fazer pão: do cultivo do trigo até a mesa, passando pelo trabalho lúdico com a leveza e brancura da farinha. Un trozo de pan, da Cia. Les Pinyes (de Cataluña, Espanha), constrói uma narrativa voltada para a primeira infância, investindo bastante no teatro de objetos e na musicalidade, para que elas observem como o pão faz parte do cotidiano e de uma cadeira de cultivo que envolve diferentes trabalhos: plantar, colher, comprar, misturar, sovar e, finalmente, comer. 

Un trozo de pan trabalha com ritmos e canções para desenhar a presença do pão na rotina das crianças, estabelecendo uma sequência de pequenos quadros narrativos que mostram a transformação do trigo no alimento que frequenta a mesa de todos os espanhóis. Em torno do pão, valores como companheirismo, partilha e nutrição são encenados pelas atrizes Marta Garcia, Cèlia Algaba e Noèlia Franch, resultando no prêmio de Melhor Direção do FETEN 2024 à Cia. Les Pinyes.

 

Una rueda que da vueltas, com atuação de Laura Santos , recupera memórias coletivas do universo dos moinhos Foto Pablo Albalá


Da vida para a morte

Nos espetáculos mencionados, o pão é alimento, memória e cultura, simbolizando as realizações humanas, a energia que nos motiva e aquilo que nos une. Se pão é vida, o que dizer de um espetáculo que fala da morte? Entrañas, do El Patio Teatro (de La Rioja, Espanha), iniciou o espetáculo com um aparente cadáver coberto por um pano. Junto à cenografia barroca de tons escuros e à referência a um corpo morto, a peça nos propõe uma viagem ao mesmo tempo lírica e científica, em que dados fisiológicos se unem a uma reflexão profunda e filosófica sobre nossos corpos e mentes. Izaskun Fernández e Julián Sáenz-López possuem uma condução precisa da narrativa, garantindo ao mesmo tempo simplicidade e profundidade às suas elaborações acerca do destino de nossos corpos. A peça foi devidamente reconhecida na categoria ideia original do Prêmio Feten 2024. 

A abordagem da morte pode ser um tanto complexa no teatro para infâncias e juventudes. Porém, o tratamento do tema pode ser mais determinante do que o tema em si mesmo. Se Entrañas consegue colocar a questão da morte de forma poética e informativa, há espaço também para algo mais lúdico e, por que não?, divertido. A instalação Escape Caravana (de (Cataluña, Espanha), da Compañía Itinerània, oferece o entretenimento das narrativas policiais, desafiando o público a resolver um crime: a morte de um coelho. Aqui, a resposta do enigma é menos importante do que as ações para resolvê-lo: começamos deduzindo uma senha secreta a partir de diversos totens que representam diferentes carros da caravana. Uma vez manipulados corretamente, produz-se uma soma numérica que garante a entrada no trailer principal. Uma vez nele, resolvemos o mistério do coelho acionando diferentes mecanismos da cenografia, o que proporciona uma experiência teatral imersiva e interativa pouco comum no teatro brasileiro para a infância e a juventude.

A Compañía Itinerània cria projetos de arte de rua, contemplando toda a efemeridade, o acaso e a participação espontânea dos passantes. Suas propostas encantam o público infantil porque são dramaturgicamente pensadas, convidando o público a resolver enigmas, a procurar pistas e a entrar em jogos de imaginação.

 

Entrañas, do El Patio Teatro, a peça nos propõe uma viagem lírica e científica sobre a morte Foto Pablo Albalá

 

Plantar, montar, imaginar

Talvez o que una propostas tão diferentes como Entrañas e Escape Caravana seja o dado imaginativo que caracteriza todo o teatro para infâncias e juventudes. A primeira evanesce nosso pensamento em direções especulativas, nos mostrando que nossos corpos são feitos de átomos e poeira, por exemplo; já a segunda, provoca nosso engajamento prático na resolução de enigmas, mostrando que imaginar pode resolver problemas e desafios. Enfim, imaginar para criar novas formas de ser e estar, resolver problemas ou apenas lidar com os mistérios da vida. 

Nesse sentido, os espetáculos que fecham nossa travessia pelo FETEN 2024 - todos voltados para a primeira infância -  são pródigos em disparar a imaginação, muitas vezes a partir do mais singelo ou abstrato contexto cênico e dramatúrgico. Tangram (La Baracca Testoni Ragazzi), Semilla (Compagnie Tea Tree) e Chiffonade (Teatro 4Garoupas) são espetáculos que descortinam propostas bastante simples, porém de alta sugestividade plástica e lúdica.

No espetáculo italiano, Tangram, formas geométricas planas criam diferentes imagens, como casas, caminhos de pedra, barcos etc., formando uma tênue narrativa que fala da aventura rumo ao desconhecido e do retorno para casa. Os atores estruturam sua dinâmica narrativa a partir da contagem de um a sete, o que é um modo bastante simples, porém altamente instigante, de criar e recriar sequências, jogos e caminhos. 

Em Semilla (da Bélgica), a partir da ideia de plantar e regar uma semente, a peça elabora situações de tédio e ansiedade, e como podemos preencher o vazio da espera com brincadeiras, jogos e acrobacias. É curioso como a impaciência dos pequenos é representada pelos atores, que se equilibram numa dramaturgia que coloca o dilema do fazer e do não fazer. No meio da brincadeira, quando menos se espera, da semente surgem as primeiras folhas.

Por fim, na peça Alemã Chiffonade (Teatro 4Garoupas), a cenografia e os objetos peculiares são o chamariz da cena. Um grande casulo impressiona os sentidos infantis, mas em seguida a manipulação de tecidos cria cenários naturais, terminando numa divertida sequência de movimentos de dança em que a performer Eugênia Labuhn desliza por uma lona de plástico encharcada de água. A dança e a cenografia se conectam a movimentos comuns às crianças - que se escondem em pequenos espaços, montam pequenos mundos com objetos e se misturam a diferentes matérias da natureza, como a água e a terra. 

Os três espetáculos compartilham o minimalismo na invenção, sendo Chiffonade o trabalho que mais investe em diferentes cores e texturas para encantar os pequenos. Porém, é interessante notar como não é com pirotecnias que se atinge o público infantil. Os espetáculos vão construindo, aos poucos, gatilhos de imaginação, sem impor uma narratividade precisa ou qualquer moralidade sobre a imagem criada. Em Tangram, criamos a sensação de acolhimento - pela união de um triângulo e um quadrado formando uma casa; em Semilla, brincamos para ver a vida brotar subitamente numa pequenina folha; e em Chiffonade, essa mesma vida se mostra num corpo com braços e pernas, feito para deslizar no mundo. 

 

Peça Semilla, da Compagnie Tea Tree, é elaborada a partir da ideia de plantar e regar uma semente Foto Pablo Albalá


Encontros

Também é importante destacar que, como se trata de uma feira e não de um festival, tivemos atividades voltadas exclusivamente a programadores, com a finalidade de gerar o intercâmbio das práticas realizadas pelo setor, estabelecendo redes e conexões, e contando com o apoio e participação da ASSITEJ Espanha. 

O FETEN é uma ocasião importante para reforçar o compromisso da cultura com a infância e a juventude. O teatro permite que nosso olhar pare e reconheça o outro, muitas vezes nos convidando à ação de se aproximar desse outro, num exercício de convivência com a alteridade. Para crianças e jovens de hoje, num mundo em constante desmaterialização tecnológico-digital, esse contato é por demais precioso. O catálogo do FETEN 2024 pode ser consultado AQUI  

 

Michele Rolim e Renan Ji* estiveram no FETEN a convite da feira. 

Michele Rolim é jornalista, crítica, curadora e Doutora em Artes Cênicas pela UFRGS, integra a FIBRA – Rede de Festivais Internacionais Brasileiros para crianças e jovens e o CBTJI (ASSITEJ Brasil). 

Renan Ji é professor de Literatura Brasileira da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), crítico teatral e jurado do Prêmio CBTIJ de Teatro para Crianças (ASSITEJ Brasil).

Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.