RELATO DA CRIAÇÃO DE "AVENIDA DAS MARAVILHAS"
Michele Rolim e Henrique Saidel, Porto Alegre (RS), 19/11/2020
O espetáculo é ancorado pelos vínculos entre elenco e a diretora Júlia Ludwig
Direção opta pela utilização poética de animações em 3D que amplia as possibilidades visuais e espaciais da obra Fotos Acervo

Bloco da Laje na Avenida

O Projeto Transit, que está na sua quarta edição, teve que se adaptar às restrições causadas pela pandemia do novo Coronavírus. Os espetáculos dos dois diretores selecionados, Júlia Ludwig e Leandro Silva, estavam marcados para estrear no Festival Palco Giratório Sesc/POA, em maio de 2020, e depois seguirem temporadas regulares, no Goethe-Institut Porto Alegre. Com o cancelamento do Festival neste ano, as duas instituições, em conjunto com os grupos, reorganizaram o calendário, bem como o formato dos processos de criação e das apresentações: o Transit 2020 será realizado totalmente virtual, pela internet.

As peças serão exibidas na primeira semana de novembro, nos dias 03, 04 e 05/11. Para assistir, é necessário realizar inscrição – gratuita – no site http://www.sesc-rs.com.br/transit/. Realizando a inscrição, você receberá o link para acesso à atividade, um dia antes da data do espetáculo. A transmissão dos espetáculos será exclusiva para os inscritos.

Neste ano, os grupos apresentarão montagens para o texto Wonderland Ave., da autora alemã Sibylle Berg. O texto aborda um futuro distópico, quando as máquinas e a inteligência artificial subjugam e deixam a humanidade para trás.

O AGORA participa ativamente dos trabalhos acompanhando o processo de criação dos dois espetáculos como provocadores críticos artísticos. Este é o relato do processo de Júlia Ludwig.

 

Trajetória marcada pelo Bloco da Laje

Júlia Ludwig realizou sua primeira montagem de um texto alemão em 2011, Descrição de uma imagem, de Heinner Muller. A peça, assim como Avenida das Maravilhas, foi vencedora de um edital do Goethe-Institut POA: tratava-se do Prêmio Montagem de Texto Alemão (Concurso Novos Diretores), uma parceria do Goethe-Institut Poa com a Prefeitura de Porto Alegre, que tinha entre seus objetivos estimular a ousadia, a criatividade e a inovação de novos encenadores. A partir de um texto determinado pela organização do concurso, o desafio proposto era o de desenvolver uma concepção teatral.

Entre 2007 e 2011, dirigiu o grupo Barraquatro, orientada pelo professor Irion Nolasco, que teve início dentro do Departamento de Arte Dramática da UFRGS (no qual Júlia se formou em 2008), onde dirigiu os espetáculos Projeto Picasso, A Fina Flor, Blues Beat e Ensaio Sobre a Repetição. Atualmente é integrante do Coletivo Das Flor e trabalha no projeto Solos Férteis, que abarca a direção de solos femininos. Dentro do mesmo projeto, atua no Solo Canção para o Povo em Pé, com composições, dramaturgia autoral e direção de Adriano Basegio. Como assistente de direção, trabalhou com diretores como Patrícia Fagundes, Daniel Colin Ramiro Silveira e Mirah Laline. Como performer, atuou com os artistas Tânia Alice (RJ), Dagmar Dorneles, Élcio Rossini, Luciane Panisson, Thiago Pirajira, entre outros.

Um dos pontos vigorosos na trajetória de Júlia – e importante do projeto avaliado em 2019 – é a sua ligação, junto com a equipe do espetáculo, com o Bloco da Laje, entidade carnavalesca bastante atuante e significativa na cidade de Porto Alegre. Júlia é uma das cofundadoras do Bloco, um coletivo de brincantes formado em sua maioria por artistas locais, com o intuito de promover encontros públicos de pré-carnaval na capital gaúcha. Surgido com o objetivo de reunir amigos, artistas e simpatizantes do carnaval para sair pelas ruas da cidade em cortejos pré-carnavalescos, o Bloco surpreendeu e reuniu mais de duas mil pessoas nas ruas da Cidade Baixa, já no ano de sua criação, em 2012.

O Bloco da Laje se vale do conceito da antropofagia para constituir sua linguagem, resultando em um grupo cênico/musical/carnavalizado, ou um bloco teatralizado, autoral, inspirado na cultura popular na composição de seus jogos e canções. Com o grupo, Júlia apresentou-se em palcos como Araújo Vianna, Pepsi On Stage, Opinião, Salão de Atos da UFRGS e nos Festivais Virada Sustentável, Morrostock e Psicodália. Recentemente, o grupo lançou o Álbum Visual Bloco da Laje 4 Estações, contemplado pelo projeto Natura Musical.

Os integrantes do Bloco da Laje formam o elenco do espetáculo: Kaya Rodrigues, Dani Dutra, Thiago Pirajira, Juliano Barros, Diego Machado e Francisco de Los Santos. Elenco, direção e demais integrantes da equipe, acostumados com os trânsitos entre teatro, música e carnaval, propondo um deslocamento da alemã Wonderland Ave. para a brasileira Avenida das Maravilhas, com todas as suas pistas de alto tráfego e seu destino insuspeitado.

Podemos considerar que musicalidade, teatralização e visualidade são as três principais características do Bloco da Laje – eixos presentes tanto na proposta de montagem enviada ao Transit quanto na obra que está prestes a estrear, nos dias 04 e 05 de novembro de 2020. Se olharmos para a proposta de montagem da obra, conseguimos visualizar esses três eixos. Na musicalidade, Tomás Piccinini, que a princípio faria uma “engenhoca sonora”, parte de sua pesquisa Sonoras Autômatas, compôs a trilha sonora através de teclado e beats eletrônicos, ao lado de Duda Cunha.

Conhecido pelo trabalho corporal e pelo jogo teatral entre atores e atrizes, nos ensaios “virtuais” os integrantes do Bloco da Laje precisaram utilizar o “arcabouço de experiências teatrais, performáticas e carnavalescas para jogar e brincar, tendo a leitura do texto como referência principal”, nas palavras da diretora. Além da experiência de criação dos atores e atrizes – que trabalharam a partir de leituras, sentados e restritos a câmeras – eles contaram também com seus vínculos já pré-estabelecidos o que permitiu uma maior fluidez.

O visual ficou a cargo do cenário virtual – feito a partir das animações 3D – de Tomás. Gabriel Faccini entrou na equipe para auxiliar na transcriação da obra para a linguagem virtual a partir de narrativas seriadas no audivovisual. Já nos figurinos, desenhados por Margarida Rache, as Pessoas utilizam uma “roupa de salsicha”, como descrito no texto, que lembra uma ficção científica futurista. As máquinas/androides vestem trajes alinhados, porém cotidianos e muito humanos, estilo anos 1970.

Um dos conceitos que norteiam o trânsito criativo empreendido é a percepção de que, na nossa sociedade contemporânea, os humanos estariam cada vez mais mecanizados, cada vez mais pré-condicionados por códigos e apetrechos artificiais, cada vez mais assujeitados, apáticos e sem vontade própria, cada vez mais reificados e entendidos como um mecanismo dominável qualquer. Em contrapartida, as máquinas (físicas e digitais) estariam cada vez mais humanizadas, mais inteligentes e criativas, auto-geradas e auto-geridas, tomando espaços e funções antes exclusivos de seus criadores humanos. Essa aparente inversão, esse paradoxo existencial, tecnológico e social – e todas as questões e possibilidades decorrentes disso – é uma das bases da encenação de Júlia Ludwig, presente já no projeto e que se manteve durante todo o processo.

E que fascinante e amedrontadora ironia: uma peça que fala criticamente sobre humanos dominados por máquinas, acontecendo justamente no ano (esse 2020 cheio de surpresas) em que nós humanos somos impelidos a nos isolar, a nos distanciar, e a mediar ainda mais as nossas interações através de máquinas e programas de computador, tornando-nos ainda mais dependentes de equipamentos de segurança e de comunicação, ainda mais sujeitos ao controle (corporal, laboral, econômico, psicológico, cognitivo, afetivo) de aplicativos e algoritmos mais ou menos visíveis. A ironia das coincidências, o sarcasmo das fatalidades anunciadas. Como lidar, enquanto artistas, com esses paradoxos? Como criar um espetáculo sobre e com algo que, inesperada e indesejadamente, estamos vivendo neste exato momento? Como atravessar e sobreviver às perigosas maravilhas dessa avenida?

Como não poderia deixar de ser, todo o processo de criação de Avenida das Maravilhas foi marcado por constantes mudanças, suspensões, retomadas, inseguranças, desafios e soluções, exigindo disponibilidade e coragem de todos os integrantes da equipe, ao se aventurarem no campo desconhecido e particular do audiovisual. Experimentação, parceria e aprendizagem foram algumas das palavras-chave desse período. Como conduzir um processo e uma equipe, quando tudo é incerto (no bom e no mau sentido)?

Lembrando que, além de todas as transformações conceituais, formais e organizacionais que os projetos do Transit 2020 sofreram, os grupos também tiveram que encarar um significativo corte de verbas – decorrente dos impactos da pandemia no caixa das instituições que financiam o Projeto –, que atingiu em cheio os orçamentos das montagens. Tanto Júlia quanto Leandro tiveram que adentrar um universo estético novo, reestruturar suas equipes e suas funções, cumprir um calendário de entrega de material e de estreia bastante exíguo, sem poder contar com a estrutura física dos espaços do Goethe-Institut e do SESC-Poa, e tendo ainda que lidar com um corte orçamentário. Se estamos aqui, há poucos dias da estreia de Avenida das Maravilhas, com tudo praticamente pronto, é porque muita gente se esforçou (e se esforçou muito) para que tudo acontecesse.

 

Habitar a distância

Todo esse contexto semi-caótico acabou por afetar não só o trabalho dos artistas e técnicos envolvidos na montagem, como também a relação que nós, críticos-provocadores do Projeto Transit, conseguimos estabelecer com a equipe. Idealmente, nossa função seria acompanhar de perto o processo de criação, em encontros semanais, possibilitando um diálogo e uma troca efetiva de impressões, comentários, sugestões, questionamentos e outros tipos de contribuições críticas. O provocador crítico artístico como um olhar híbrido dentro/fora, capaz de testemunhar e participar do processo. Uma relação delicada, tateante, que seria construída horizontalmente na convivência do trabalho.

No entanto, agora, passado todo o período de criação, nos vimos às voltas com o desafio de escrever sobre o acompanhamento de um processo que, por diversos motivos, não se deixou acompanhar de fato. Acompanhamos, mas permanecemos distantes, um tanto alheios aos meandros e cotidianidades do processo. Ao longo do tempo, aprendemos a encarar e habitar a distância. Habitar a distância e saber que ela fazia parte do próprio processo, ela era a própria substância da criação (ou, ao menos, uma das substâncias), desta criação artística – nessa contemporaneidade pandêmica que a todos conecta e a todos isola, em seus diferentes contextos.

Habitar a distância e valorizar as pequenas aproximações. E houve aproximações, e foram importantes. Convivemos e compartilhamos com o elenco e a direção o estranhamento e o incômodo com a distância das interações virtuais. Habitamos juntos alguns ensaios pelo Zoom, onde o texto de Berg foi lido e discutido, onde as intenções e entonações de cada frase foram testadas e consolidadas – isoladamente e em diálogo com outras frases –, onde sugestões eram ouvidas e conversas eram estimuladas, expandindo os entendimentos sobre a obra que estava sendo criada ali, coletivamente, mesmo que de forma tão fragmentada quanto uma janela de videochamada.

As perguntas que Júlia endereçava aos atores (a todo elenco, em ensaios coletivos, e a cada ator, em ensaios individuais), fazendo-os tomarem posição frente aos personagens e à situação proposta pela dramaturgia, são disparadoras de criação, de caracterização, fazendo surgir as imagens que revestirão aquelas palavras, aqueles diálogos precisos entre Pessoas e Máquinas. Perguntas acompanhadas de indicações específicas sobre determinado elemento do trabalho, sobre determinada escolha da atriz, sobre possibilidades de se dizer e se mostrar diante de uma câmera. Disponível e propositivo, o elenco dedicava-se a entrar naquelas palavras e fazê-las ganhar corpo, acolhendo as perguntas e ensaiando respostas àquelas e outras demandas ainda por vislumbrar.

Os poucos ensaios, para além da necessidade objetiva de aproveitar cada espaço na agenda dos artistas, serviram para fortalecer ainda mais os vínculos entre direção e elenco, entre elenco e equipe técnica, entre todos e a câmera, entre a câmera e futuro espectador. Vínculos mantidos na distância. Uma distância – é verdade – permitida e sustentada por anos de vínculo pessoal e artístico e corporal presencial, de um grupo onde a proximidade dos corpos e dos afetos sempre foi potente e apoteótica. Mas, ainda assim, uma distância. Como renovar e celebrar a potência e a apoteose de uma arte festiva e lindamente corpórea, quando as circunstâncias exigem distância, isolamento, mediação e controle por meio de máquinas e programas de computador? Como minimizar o não-contato físico, a frieza luminosa das telas, a inconstância e a falta de sinal de internet, sem esquecer da defasagem temporal (o inescapável delay, presente inclusive nas interações “ao vivo”) entre as imagens, pensamentos e ações de cada integrante do grupo? Como criar um teatro que supere tudo isso e suas próprias limitações e, ainda assim, seja teatro?

As pérolas que surgiram em cada ensaio, as pequenas e grandes conquistas poéticas alcançadas em semanas e meses de encontros virtuais, só foram possíveis justamente por conta do entrosamento e confiança prévios daquela equipe, daqueles artistas dedicados e comprometidos com um trabalho que se insere em uma trajetória maior, em uma pesquisa e uma existência artística que borra as fronteiras do teatro, da performance, da música, da festa, do carnaval e se espraia pela vida, pelo mundo.

Além dos ensaios, a entrevista que realizamos com Júlia (e que publicamos no site do AGORA) trouxe mais informações sobre suas escolhas e encaminhamentos, revelando alguns dos conceitos e estratégias discursivas desenvolvidos pela montagem. Da mesma forma, o longo e generoso relato enviado pela diretora – na véspera do fechamento deste texto – permitiu que pudéssemos olhar para o processo de criação de Avenida das Maravilhas com lentes mais nítidas e compreensíveis. Como disse Júlia, “Nessa avenida de maravilhas nosso bloco virtual evolui, passa, desfila, avança pela escuridão. Antropafagicamente engole o texto de outro continente e o devolve, com uma dupla de artistas negros brasileiros tomando a palavra da Pessoa branca, européia, hétero sexual e de classe média, provocando contrapontos de visão essenciais e demarcando uma posição através da própria presença, existência e reinvenção. Salta do palco e brilha na tela, como um sinal dos tempos. Provoca a olhar pra algo por trás da máquina, por trás da culpa que jogamos para os políticos e corporações. Avenida das Maravilhas olha para dentro da condição humana em meio ao caos. Entre escombros busca respostas ao se deparar com a voz de uma criança que sinceramente pergunta antes de adormecer: Vai ficar tudo bem?”

 

 

Desafios de uma nova forma de criação teatral

Ao final de tudo, Avenida das Maravilhas tomou a forma não de um espetáculo isolado, mas de uma mini-série de pequenos espetáculos: a relação conturbada entre Pessoas e Máquinas é contada em três episódios, que serão apresentados nos dias 04/11 (episódios 1 e 2) e 05/11 (episódio 3). A experimentação com a linguagem audiovisual e a consciência da temporalidade particular da audiência de streaming proporcionaram esse formato pouco comum nos palcos. Da mesma forma, a opção pela utilização poética de animações em 3D amplia ainda mais as possibilidades visuais e espaciais da obra: as limitações que a concretude dos cenários e dos corpos físicos poderia acarretar são vencidas pelas possibilidades gráficas quase infinitas do mundo pixelado. Se a Avenida das Maravilhas é toda uma ilusão construída pelas máquinas para dominar e explorar aqueles infelizes seres humanos, então essa mesma ilusão pode ser aliada da arte que a representa.

As gravações ocorreram em diferentes espaços, na alucinante gincana para produzir sets de filmagem presencial em plena pandemia. Um desses espaços foi o Teatro Renascença, o outro, a sala da casa da diretora. Nos locais de gravação, um fundo infinito verde-limão de chroma key garantiu o uso futuro de animações e inserções digitais de cenários e objetos. Além disso, um teleprompter com as falas de cada personagem orientou o recortado processo de gravação, já que cada atriz e ator gravou sua parte separadamente. E mais: a diretora não estava presente nas gravações, e acompanhou/orientou todo o processo remotamente. A aflição não foi pouca: “Eu que trabalhei sem parar ao lado dos meus colegas para realizar aquele grande momento, não pude acompanhar muitas horas da gravação em si. Ficava angustiada em casa imaginando se tudo estava dando certo. Com uma imensa confiança e gratidão pela equipe, porém frustrada e também culpada por não estar realizando aquele que teoricamente era o mais fundamental dos meus papéis”, resumiu Júlia. Entretanto, nada que uma equipe afinada e experiente não conseguisse contornar e realizar bem o seu trabalho.

Nas diversas manifestações públicas do elenco e da direção, divulgando as apresentações, é possível perceber o quão intensos foram os desafios desta peculiar forma de exercer a criação teatral. De fato, tempos intensos exigem processos e obras intensas. Júlia e sua Avenida das Maravilhas estão conectadas com o seu tempo, encarando as intempéries e fazendo acontecer.

 

 

Ficha Técnica

Adaptação e Direção: Júlia Ludwig

Efeitos Visuais, Direção Musical, Direção de Arte, Colorista e Identidade Visual: Tomás Piccinini

Direção Audiovisual: Gabriel Faccini

Montagem: Gabriel Faccini e Tomás Piccinini

Produção: Cia Circular

Iluminação e elétrica: Carol Zimmer

Assistência: Betina e Jo Carminatti

Design de Som: Duda Cunha

Trilha Sonora: Duda Cunha e Tomás Piccinini

Elenco: Chico de Los santos, Dani Dutra, Diego Machado, Ju Barros, Kaya Rodrigues e Thiago Pirajira

Figurinos:
Concepção: Margarida Rache

Assistência: Patrícia Preiss

Costuras: Antonia Maria de Lourdes Silveira

Adereços: Chico de Los Santos

Cenotécnica: Rodrigo Shalako

Texto: Sibylle Berg

Tradução: Luciana Waquil

Provocadores críticos artísticos: Henrique Saidel e Michele Rolim