ENTREVISTA: LEANDRO SILVA
Redação, Porto Alegre (RS), 21/10/2020
Com direção de Leandro Silva "Wonderland Ave. – Experiência de criação cênica em confinamento" estreia no TRANSIT 2020
Texto da alemã Sibylle Berg sobre um mundo distópico dominado pelas máquinas ganha montagem online Foto Arquivo Pessoal

O diretor Leandro Silva de 38 anos fala sobre as escolhas e as características principais do espetáculo Wonderland Ave. – Experiência de criação cênica em confinamento que poderá ser assistido online, na sua estreia do dia 03 de novembro de 2020.

O texto da alemã Sibylle Berg será encenado, de forma independente, por dois diretores, além de Leandro, por Julia Ludwig, dentro do projeto Transit 2020. As montagens são uma corealização do Goethe-Institut Porto Alegre e Fecomercio/Sesc RS em parceria com o AGORA.

Da mesma forma que nas edições anteriores, os processos de criação são acompanhados por dois provocadores-críticos do AGORA Crítica Teatral – Michele Rolim e Henrique Saidel – que participam de todas as etapas do Transit, incluindo a seleção das propostas, as negociações e adaptações ao contexto pandêmico atual, e o trabalhos dos grupos até a estreia.

Leandro Silva é artista bonequeiro e é mestre em Artes Cênicas pela UFRGS autor da dissertação Teatro de animação e tecnologias : um olhar a partir da Interface sobre o trabalho de algumas companhias do Rio Grande do Sul .

Diretor artístico e um dos fundadores do Grupo Fuzuê Teatro de Animação. Entre seus trabalhos, destacam-se: Fuzuê no Sertão Encantado (2013-2015), Devaneios (2015-2016), Grimm Para os Pequenos (desde 2015), As Malditas (2016), Os Três Presentes Mágicos (2016-2017) e Bandele (2018).

O AGORA conversou com o diretor sobre a peça que apresneta um mundo dominado pelas máquinas, no qual os seres humanos que restaram estão sendo vigiados e conduzidos em sua rotina artificial por robôs. “Penso que estamos em queda livre, pouco refletindo sobre o processo de despersonalização, de progressiva mediação da vida pelas tecnologias”, opina Leandro. Confira abaixo a entrevista:

 

AGORA - Leandro, você é conhecido pelo seu trabalho como artista bonequeiro, com mais de quinze anos de trajetória do Teatro de Animação. O projeto inicial era voltado a experiência de um “Teatro de Avatar”, no qual o trabalho dos atores/atriz é mediada pelos dispositivos tecnológicos do espetáculo. O que podemos entender como “Teatro de Avatar”? Esse conceito permanece presente da peça?

Leandro Silva - O Teatro de Bonecos está sempre em constante transformação e, mesmo esse artefato, o Boneco, passa por transformações constantes, reinventando os limites e a materialidade de seus corpos. Estamos sempre inventando outros corpos para o boneco ou tensionando os limites dos corpos dos bonecos. A luz, a fumaça, a imagem, os materiais efêmeros, a água, a terra, o corpo do ator animador… são novos “materiais” de composição de corpos para os bonecos atualmente, para além de materiais e técnicas tradicionais como a madeira, o machê, a papelagem, com as quais aprendi a arte do boneco. Essa é uma discussão muito grande hoje no meu grupo, o Fuzuê Teatro de Animação: os corpos dos bonecos e suas relações com os corpos dos atores. E esses corpos também se configuram não só a partir de uma materialidade, mas também a partir da relação que eles estabelecem com quem os anima e com os espectadores. Hoje, a palavra “manipulação” saiu do meu repertório, por ser vertical. Acho que a relação ator-boneco-espectador ganha cada vez mais horizontalidade. No projeto original para Wonderland Ave., aproveitaríamos as práticas desenvolvidas durante oito meses para o espetáculo COMA, terceira montagem do grupo Fuzuê. COMA é um trabalho feito com a colaboração integral e direta do ator Marco Marchessano, que faz comigo dentro do grupo essa discussão do Pós-Humano na arte. Pensamos então, para a proposta do Transit, elaborar o palco como um “ambiente imersivo”, onde um dos atores não pode entrar de forma direta, mas apenas através de sua imagem – como no “avatar” dos games, da internet, do universo digital, e também do seu contexto original, de divindade que desce à terra, na espiritualidade hinduísta. A técnica em si era simples, apesar de muito complicada para sincronizar: telas de 3m x 2,40m, feitas com metalon e tule ilusion, que tanto permitiam uma porosidade quanto a projeção de imagens, e um ator que ocuparia essas telas através de múltiplas projeções mediada por um computador que permitiria distorcer, modificar, alterar a imagem em tempo real. Tudo feito ao vivo, na presença do espectador. Inclusive os erros e eventuais problemas técnicos poderiam ser incorporados à encenação. Como bonequeiro, as associações com o Teatro de Animação são diretas. Não animamos bonecos, máscaras, objetos. Animamos imagens. E a própria forma, o arranjo disso tudo já emprestava o ambiente para o texto de Sybille Berg, já trazia essa distopia, esse mundo governado por forças estranhas e onipresentes. Quando falo da minha relação com Bonecos e Tecnologias, sempre pensei nessas como poéticas para o “ao vivo”, para geração de jogos e efeitos entre corpos animados e inanimados diante das pessoas, no tempo e espaço do encontro físico, dentro de um edifício teatral. Então, a pandemia e a impossibilidade de aglomeração que afetou a todos nós, teatreiros, não nos colocou em melhor situação por ter essa pegada com o techno no projeto. O enfoque que eu tenho de pensar a tecnologia não fazia mais qualquer sentido. E tivemos que, superado o luto, abandonar o barco – talvez para retomar lá na frente a proposta em COMA – e partir para outras possibilidades. Da proposta original, em termos materiais, sobraram os figurinos, as estruturas metálicas e os tules que compunham os ecrãs e quilos de metal. Mas o que interessa estava preservado: o desejo da equipe de fazer o “possível” dentro de um contexto truculento para as nossas vidas, que é esse o da pandemia. Mas não enxergo a permanência do desenho e da técnica original no que o trabalho se tornou, porque os pressupostos são completamente outros.

AGORA - Como as escolhas propostas para esse espetáculo online se aproximam do universo do Teatro de Animação?

Leandro - No vídeo, aconteceu um movimento interessante. Quando pensamos no projeto original, pensávamos em corpos desmaterializados, avatar, imagem e projeções. Outros enfoques do Teatro de Animação. Na transição forçada para um “teatro filmado”, inicialmente pensamos em fazer apenas um registro da obra a partir das casas dos atores e de suas experiências de confinamento social. A ideia era atuar apenas com uma voz (da atriz), através de ligação telefônica, um trabalho que a atriz Márcia Metz elaborou de forma incrível. Ela inventou uma voz de inteligência artificial só no “gogó” e que, ouvida através da ligação telefônica, dispensou qualquer tratamento e efeito. Eu estava na linha “oito ou oitenta”: já que não pudemos fazer o projeto original do espetáculo, seria então um “teatro filmado” da obra Wonderland Ave., feito a partir de nossas casas. Seria uma expressão de nosso momento mesmo, de nossos cotidianos marcados pelas inseguranças, pelo medo do futuro, pelas muitas interrupções (inclusive de vidas: um dos membros da equipe perdeu um familiar por conta da Covid-19), sem a participação de elementos do Teatro de Animação. E pronto. Mas então, em conversa com Silvia Serrano, pensamos em ter algumas poucas cenas em que a Márcia Metz pudesse aparecer e não ficar só na voz, e ela pudesse manipular alguns artefatos, como maquetes. O resultado foi um retorno do Teatro de Animação à cena: maquetes, pequenos bonecos e estruturas autômatas, em sua versão mais análogica e tradicional, assinadas pela Silvia Serrano, que a atriz brinca e manipula como uma criança. Fui no fluxo: a princípio eu não queria, mas também não estava fechado. E hoje estou feliz e grato de ver os bonecos e suas travessuras nos fazendo companhia no vídeo. Os bonecos estão comigo em tudo, estão sempre sobre a minha mesa, estão sempre me olhando da estante, carrego uma abayomi no pescoço. Eu me sinto feliz na companhia deles.

AGORA - Na proposta da encenação, as tecnologias estavam muito além de um mero recurso, mas como uma poética compositiva da cena como um todo. Nessa montagem online, como você avalia o papel da tecnologia?

Leandro - Chegamos a um cúmulo da vida mediada pelas tecnologias. O espetáculo fala disso e, de repente, a vida se torna uma grande Wonderland Ave.. Nós fugimos de qualquer tentativa de colocar a tecnologia em evidência na montagem online, porque ela se tornou o único caminho para tornar um trabalho teatral possível. A tecnologia, agora, é a metalinguagem do fazer e do fruir teatral na pandemia. Agora, seria necessariamente filmado, editado, mediado, transmitido por site, em um link, online... Sem opção. Sem escolhas. Estava dado! Então passamos a desejar nossas próprias roupas, nossas casas, nossos corpos, nossa presença física, tanto quanto fosse possível, na elaboração desta versão para a internet. Por isso, a escolha pela crueza dos atores, das casas como cenários, do cotidiano como lugar, sem figurino e sem maquiagem. E onde foi parar a tecnologia? Você vai assistir a essa peça necessariamente em um formato filmado, editado, mediada, transmitido por site, em um link, online… A tecnologia não é mais uma ferramenta. Virou um lugar do possível, com tudo de potente e de angustiante que ela traz. Sendo assim, optamos por um caminho inverso mesmo, com o quanto de vida cotidiana e crua conseguiríamos preencher, voltamos para a artesania e para a experimentação, a “des-elaboração” mesmo, um caminho completamente inverso da proposta original.

AGORA - Ao longo do processo, novas pessoas se agregaram à ficha técnica e também algumas mudaram de funções. Isso atrapalhou ou ajudou na montagem da peça?

Leandro - Ajudou bastante, mas teve dois momentos. Antes e depois da interrupção. Sempre trabalhei com equipes de artistas vindos de áreas diversas e, nesse caso, experimentávamos muitas zonas de desconforto. O Coletivo Catarse (Billy e Paulinho) tinha que filmar, editar e fazer trilha ao vivo, fora da solidão dos estúdios. Silvia tinha que subir num palco, que era um baita desafio para ela. Ela não é atriz. E mesmo os atores, Paulo Roberto Farias e Marco Marchessano, estavam explorando atuar em um “cenário” que não era cenário, mas um dispositivo, que mudava o tempo todo de configuração. Então era tenso, mas ninguém arredava pé, porque era gostoso, porque a gente se encontrava, ria, chorava. Mas era muito desafiador e experimental também. Todo dia, uma novidade. Quando o processo foi interrompido, estávamos ensaiando praticamente todos os dias, alternando entre o teatro do Instituto Goethe e o Espaço Cerco Cultural. Com a pandemia, esse arranjo mudou e, no geral, todos voltaram para suas zonas de conforto. A Márcia chegou para somar na atuação e liberar a Silvia para a composição das maquetes e bonecos, porque agora não havia mais a necessidade de uma “atuação avatar” mediada por vídeo, mas a necessidade de um trabalho efetivo de atuação cênica, com proeminência da voz.E o Zé Renato, nosso iluminador, que também é ator profissional, manteve-se conosco, agora na atuação e na construção da terceira Pessoa – compondo seu personagem a partir de trechos da peça tirada das falas dos outros dois atores. Eu entendo, agora, que esse retorno às “zonas de conforto” foi salutar para a saúde mental de todos nós. De tenso, já bastava o risco cotidiano da Covid-19 e as incertezas sobre o futuro de nossas vidas e trabalho. Outra questão sobre a equipe é que sempre mantive uma relação com todos, desde a suspensão do projeto original até a reta final. Mantivemos uma agenda regular de encontros para compartilhar nossas notícias, sentimentos e medos porque teatro não é só o nosso trabalho e a nossa profissão; é também o modo como nos relacionamos com o outro e com o mundo, é afeto. Sempre foi sobre afeto e sobre afetar; e mais do que nunca precisou ser. Fiquei muito feliz por termos mantido um vínculo durante e para além do trabalho. Penso que fazer teatro na pandemia não é um movimento de “salvação” do teatro. O teatro não precisa ser salvo. Na verdade, é o teatro que está nos salvando, o tempo todo. É o teatro que tem nos guardado e curado de todos os males.

AGORA - Na sua proposta de encenação, você considera importante refletir sobre como a delegação das esferas das nossas vidas às máquinas, implicará em quanto de liberdade teremos num futuro próximo. Como você enxerga essa questão?

Leandro - Todos que se relacionam comigo sabem da minha visão pessimista e distópica sobre essa imbricação da vida cotidiana pelas tecnologias. Penso que estamos em queda livre, pouco refletindo sobre o processo de despersonalização, de progressiva mediação da vida pelas tecnologias. O celular se tornou um terceiro rim, vital para as pessoas, ou pior, um óculos, um filtro através do qual a pessoa vê, ouve, enxerga o mundo. Mas o que me preocupa é não olharmos criticamente essa relação com as máquinas e o alto custo que isso tem provocado para nossas vidas pessoais, emocionais, sociais e para as democracias. Aliás, no campo das esquerdas, ainda se reflete pouco o papel basilar das redes informáticas na ascensão da extrema direita fascistóide no mundo e também não refletimos como utilizar elas a nosso favor. Mas, ao contrário do que pode parecer, eu não sou tecnofóbico. Muito pelo contrário: eu acho que essa virada de jogo passa pela apropriação crítica das tecnologias, de hackear os sistemas a partir de dentro, de recuperarmos em alguma medida a autonomia de nossa relação com elas. Nós criamos tecnologias, mas as tecnologias, no mesmo movimento, nos criam e nos transformam. É preciso ter consciência disso, se apropriar disso. Devemos decidir o uso das informações a nosso respeito e o que é feito delas e também conhecer outras redes e outras profundidades da internet, sair da surfnet e mergulhar por outros universos que ela esconde. E tudo começa por exercitarmos todo dia uma retomada dessa autonomia. Resistência é saber desligar o celular para dormir, é desativar notificações, não ceder a pressões por resposta em chats imediatas para satisfazer a ansiedade de todo mundo, é trocar o sistema de seu computador por tecnologia livre, migrar para outras redes, conhecê-las, é curtir o anonimato. É reconhecer as bênçãos das Inteligências Artificiais tanto quanto seus perigos. Aliás, elas são uma revolução para medicina, a agricultura, as pesquisas. A arte não tem porque temê-las. Acho que precisamos encontrar esse caminho do meio. Nem tecnofilia, nem tecnofobia.

AGORA - A peça Wonderland Ave. de Sibylle Berg parece profética em relação ao período de isolamento que vivemos hoje. Quais são as conexões que você estabelece?

Leandro - Para todos nós, é chocante a semelhança do isolamento social com o “adorável condomínio” de cumprimento de normas imaginado por Sibylle Berg em sua obra. De repente, nos vemos trancados em casa (quem tem condições e/ou consciência para fazer isso), nos relacionando através de “máquinas”, enquanto o mundo se desmancha, se esfarela lá fora. Essa situação nos faz acordar muitas manhãs perdidos e se perguntando: Isso tudo que está acontecendo? É real? Eu quase escuto um coro de máquinas respondendo: “O que é real?”. Não é sem susto, medo e até um tanto de constrangimento que escutamos alguns trechos da peça. Um dos atores até brincava que Sibylle Berg tem uma máquina do tempo guardada na garagem de casa. Mas creio que ela é apenas sensível e atenta ao nosso próprio tempo. A pandemia e a brusca necessidade de isolamento social só exacerba processos que já estavam em curso no mundo. Não inaugura exatamente uma novidade. Onde estávamos esse tempo todo que não vimos?

AGORA - Quais são as principais referências (artísticas e não-artísticas) do espetáculo? Como elas foram trabalhadas no processo?

Leandro - São muitas, mas é preciso situar antes e depois da interrupção do processo por conta da pandemia. Antes do confinamento, minhas referências eram o Teatro Visual da Companhia Philippe Genty, de como ele constrói esses mundos visuais e imersivos num palco. Quisera termos grana pra investir na milésima parte daquilo, mas é uma inspiração para muitos artistas em todo mundo. E naquele momento eu estava muito ligado no trabalho da diretora francesa Sylvie Baylon e nas ideias do artista e pesquisador italiano Enrico Pitozzi, sobre como ele pensa as poéticas e estruturas tecnológicas como “dispositivos compositivos da cena tecnologicamente integrados” e não como meros recursos. Com a interrupção do processo, passei a assistir o trabalho experimental de companhias na pandemia, como Éramos um Bando, do Grupo Galpão. Aqui no Rio Grande do Sul, os trabalhos para a internet do Grupo Jogo de Experimentação Cênica, que esteve no Estado na dianteira de pensar a cena teatral para a internet, ao invés de fazer mera transposição de arquivos – e fazem isso com muita qualidade. E recuperei meus cadernos de anotações de um seminário de Poéticas da Escuta que fiz como estudante de mestrado com a professora e atriz Mirna Spritzer, que me deu um “clique” definitivo sobre as possibilidades poéticas e compositivas da voz e da escuta. Ela é uma professora, uma artista, uma educadora incrível, e esse seminário que ela coordenou foi basilar para pensar esse segundo momento, de ocupação de uma tela diminuta dos celulares pelo olhar, a escuta e pela voz. No mais, tenho as minhas referências de fundo como bonequeiro. O Mamulengo, no Nordeste, que super dialoga com a inovação em todos os sentidos. Aqui no Sul, o trabalho das companhias Caixa do Elefante, de bonecos; a Cia. Lumbra, de sombras e o teatro maquínico do De Pernas Pro Ar sempre fizeram a minha cabeça e mantenho sempre que posso o diálogo próximo e direto com eles. No Grupo Fuzuê Teatro de Animação, nos últimos dois anos, estamos empenhado em aproximar as ideias do pós-humano da cena de animação. Além dos pesquisadores próprios do teatro de animação, nos dedicamos a olhar com muito interesse o trabalho da Fundação Cyborg e seus artistas (https://www.cyborgfoundation.com), os estudos da brasileira Lucia Santaella, da argentina Paula Sibilia e de Pierre Lèvy, que é radicado na França. É muita coisa, mas é bem a cara no Grupo Fuzuê Teatro de Animação, ficar pensando nos pressupostos de uma arte cyborg enquanto meleca as mãos de cola fazendo papelagem na construção de bonecos bem analógicos.

AGORA - Quais foram e/ou estão sendo os maiores desafios na readequação do espetáculo para as plataformas digitais/virtuais? O que mudou ao longo do processo? O que permaneceu?

Leandro - Eu já pensei muito sobre isso e penso que foram três os maiores desafios: o primeiro, foi e é a própria situação do isolamento social que não nos permitiu ensaiar corpo a corpo. Fizemos alguns ensaios por videoconferencia e tivemos um dia para nos encontrarmos e fazer tudo que tinha que fazer de forma individualizada com os atores: ensaio geral, decidir as cenas, passar, gravar, etc, porque estamos vivendo uma pandemia com um risco grave e real à nossa saúde e corpos; não daria para ser diferente, nem fazer mais que um ou dois encontros com cada um, porque realisticamente isso implicaria em deslocamentos, algum nível de contato e os riscos estavam ali. Então, foi tudo muito intenso e feito com o máximo de cuidado para a preservação da saúde de cada um. Fomos no máximo do que era possível para cada um, em termos de saúde, até porque alguns além de sua própria saúde, passaram a cuidar de pais e avós na pandemia, outros são pais de crianças pequenas e levar o vírus para casa não podia ser, em hipótese alguma, uma possibilidade. O segundo desafio foi obrigar uma equipe e um diretor, ter que se achar da noite para o dia com duas linguagens nas quais eles não estavam apropriados: o audiovisual e a internet. São linguagens que dialogam com o teatro, mas tem seus próprios códigos, técnicas, mundos e processos e, de repente, nos vimos muito pertos. Foi e está sendo muito confuso. Mas, no fim, tem sido interessante essa experimentação. O terceiro e mais cruel desafio foi o fator tempo, o curtíssimo espaço de tempo para maturar o formato da peça, exatamente por conta das condições anteriores que eu citei. A peça nasce a fórceps, com muitas coisas que poderiam ter sido, mas não deu tempo de ser, de coisas que poderiam ter sido refeitas, e assim por diante. Mas queríamos colocar a 4ª edição do Transit “na rua” ainda esse ano, porque essa é a história do fazer teatral na pandemia, essa é a história do Transit 2020. E esse foi um desejo, uma compreensão e um acordo de todos: dos dois grupos, do Goethe-Institut, do SESC-POA, dos provocadores do AGORA. Tivemos a coragem de viver o teatro possível na pandemia e acredito que, lá na frente, vamos olhar pra trás e ficarmos felizes porque se viveu o que tinha para viver. É preciso coragem para viver seu próprio tempo. E isso o teatro sempre soube fazer muito bem.

AGORA - Como está sendo pensada a relação dos artistas e do espetáculo com o espectador, nesse formato?

Leandro - Uma coisa que descobri no fazer e que me interessou muito foi imaginar onde estaria o olho do espectador vendo a peça por vídeo, em uma telinha do celular ou do tablet (porque acho pouco provável que as pessoas irão assistir em desktop ou TV). Durante toda a gravação, insisti com os atores para encontrar no “olho” da lente a pupila do olho do espectador, dirigir-se a ele, cravar os olhos nele. No trabalho existe essa tentativa de estabelecer uma relação remota a partir da busca de um olho, de um olhar, que também é remoto no tempo e no espaço. Por conta disso, o contra-plongée, o plano fechado e o detalhe são os principais pontos de vista do vídeo. Outro recurso sensorial que me interessa – descaradamente copiado do filme HER (ELA) – é essa atuação com uma voz. Quase toda a peça é um registro de atuação dos atores Paulo Roberto Farias, Marco Marchessano e José Renato Lopes, com uma voz – da atriz Marcia Metz – que fazia isso através de ligação telefônica ou por Whatsapp na filmagem presencial com cada ator. Eu sabia disso em hipótese, mas foi a primeira vez que senti e vi que a voz pode ser um corpo total. Quero destacar bem isso: não incluímos a voz da atriz a posteriori, feita em estúdio. Nem daria tempo, aliás. Esse foi um jogo instaurado no momento da gravação: ela ligava e um segundo microfone captava a voz dela no momento da atuação. Contrariando a proposta inicial do Coletivo Catarse de Comunicação, foi minha a decisão e o risco de colocar a voz ali, sem muito tratamento, sem muita edição. Por toda essas opções, riscos e exercícios, é que entendo que o nosso trabalho é uma “Experiência de Criação Cênica em Confinamento”, que desejamos que fosse o “subtítulo” do trabalho, exatamente para situar o espectador dentro dessa experiência. Não tenho maiores pretensões com esse trabalho, a não ser compartilhar a experiência de artistas tateando modos de fazer e existir na pandemia, com o seu trabalho.