ENTREVISTA: MARIA MILISAVLJEVIC
Redação, Porto Alegre, 23/04/2018
Entrevista exclusiva com a autora de Beben (Tremor) que estreia no Brasil pelas mãos do diretores Patricia Fagundes e Lucca Simas
Maria Milisavljevic em imagem publicada no site Nachtkritik, a partir de vídeo de Max Büch

Dramaturga alemã de 35 anos fala sobre a estreia no Brasil de Beben (Tremor), que será encenado independentemente pelos diretores gaúchos Patricia Fagundes e Lucca Simas, dentro do projeto Transit 2018. As montagens estrearão em maio durante o festival Palco Giratório SESC, em Porto Alegre.
A montagem de Patricia Fagundes estreará em 17 e 18 maio. A direção de Lucca Simas para o texto estará em cartaz 22 e 23 de maio. As duas temporadas serão no Teatro do Goethe-Institut Porto Alegre.
Os editores do AGORA, Michele Rolim e Renato Mendonça, estão acompanhando os processos de criação dos dois espetáculos na condição de críticos internos e postarão seus relatos e reflexões no site.
Maria Milisavljevic  estará na capital gaúcha para acompanhar as estreias e participará de debate sobre o texto e as encenações, e afirma que será um desafio: "As montagens em Porto Alegre serão as primeiras em que vou assistir Beben numa língua que eu não falo".

O AGORA e os diretores Patricia Fagundes e Lucca Simas enviaram algumas perguntas via email para Maria. Confira abaixo as respostas:


AGORA – A inspiração para você escrever Abismo (Brandung, 2013) teria vindo de um sonho, em que um homem num metrô lhe dizia “Alô, velha amiga!”, e ainda do desaparecimento e morte de uma amiga de sua irmã. De onde vem a inspiração para suas peças? Qual a inspiração para escrever Tremor (Beben)?
MARIA MILISAVLJEVIC –
A inspiração para minhas peças vem, geralmente, de momentos ou acontecimentos com uma forte carga emocional. Beben surgiu no verão de 2015. Na nossa casa, perto de Passau, no sul da Alemanha, logo após a fronteira com a Áustria. Eu estava na cozinha. Meu filho, com dez anos na época, estava sentado no sofá jogando Minecraft. Lá fora, fazia 38 graus à sombra. O sol flamejava em direção à Terra. Era meio-dia, e eu olhei pela janela e avistei um grupo de jovens sentado debaixo da nossa nogueira, na calçada. Achei que eram escolares descansando um pouco antes de continuar seu passeio de bicicleta, e fui oferecer a eles algo para beber. Quando me aproximei, vi que não eram escolares. Era um grupo de garotos entre 12 e 19 anos, eles estavam cansados e fumavam. Refugiados. Provavelmente tinham sido largados ali nas proximidades por um desses coiotes e se perdido. Polizia, falou um. Outro mostrou no seu telefone celular. Polizia. Passau. As garrafas de água que eles traziam estavam vazias e tinham rótulos da Hungria. Eles não tinham comido nem bebido mais nada desde a Hungria. Obviamente eu tinha notícia do afluxo de refugiados chegando diariamente, das centenas e milhares de pessoas em busca de refúgio que, naquele verão, seguiam em marcha pela rodovia A3, passando a pouco mais de 1 Km da nossa casa. Mas fui ingênua e cega. Tão cega que nem mesmo quando os vi ali, debaixo da minha nogueira, entendi que os meninos eram refugiados. Crianças. Alguns não muito mais velhos do que o meu filho. Sozinhos a caminho. Finalmente na Alemanha.

AGORA – Você traduziu Um Inimigo do Povo, de Ibsen, para o Tarragon Theatre, de Toronto. Em entrevista, contou que o texto sofreu várias interferências durante os ensaios. Até que ponto um tradutor, ou mesmo o diretor, pode ou deve interferir no texto original?
M.M. –
Quando eu mesma traduzo meus textos, interfiro bastante neles. Isso acontece, então, uma forma bem anglófona, no sentido de desenvolvimentos da peça. Meus textos são frequentemente local e temporalmente situados, por isso gosto de adaptá-los para cada produção. Mas, como eu disse, essa é a cultura norte-americana e inglesa. Culturas teatrais mais assentadas num "teatro de diretor" (Regietheater), como as do continente europeu e da América do Sul, preferem ter como base os textos literais e deixar que os diretores façam suas interferências no texto. Nesse caso, os tradutores mantêm-se bem próximos ao original. O que o(s) diretor(es), então, faz(em) com meu texto é problema dele(s). Eu não tenho nada a ver com isso. Eu também prefiro não me intrometer nessa questão porque acredito que um texto, no processo dos ensaios, desenvolve uma voz completamente nova. Atores e direção constróem algo novo com base no meu texto. Uma intromissão por parte do dramaturgo pode inibir muitas coisas interessantes.

AGORA –  Em entrevista, você disse que gosta de assistir a teus textos encenados em línguas que não domina, porque isso lhe permite se conectar com suas histórias muito mais pela emoção do que pelo pensamento. Alguma expectativa sobre Tremor (Beben) encenado em português?
M.M. –
As montagens em Porto Alegre serão as primeiras em que vou assistir Beben numa língua que eu não falo. Isso é instigante, porque vou precisar confiar na minha intuição e decifrar expressões e gestual. Personagens e suas interrelações ganham subitamente novos significados, uma vez que sua dinâmica se revela diferente. Essa expectativa me deixa entusiasmada.

AGORA – O teatro alemão tradicionalmente se engaja nas grandes discussões políticas. Essa característica se mantém hoje em dia? Tremor (Beben) é um exemplo de teatro político?
M.M.
– Sim, é.  E eu acho bom que o teatro alemão, nas últimas décadas, voltou a se posicionar politicamente. Até há pouco tempo, "teatro político" era sinônimo de um teatro pesado, árido e com viés educativo. Agora o teatro pode ser ao mesmo tempo selvagem, lúdico e político. Isso é maravilhoso.

AGORA – Ao receber o prêmio Heidelberg Play Market, em 2016, você leu um manifesto que convocava os dramaturgos a acreditarem no “poder de suas palavras” e que “o teatro pode moldar a realidade e transformar o mundo”. Essa crença continua?
M.M. –
Vários críticos ridicularizaram o manifesto na época. Alegavam que ele seria ingênuo. Nele nós fizemos sobretudo uma convocação no sentido de o teatro voltar a ser diálogo. Uma grande desvantagem do Regietheater é que o papel do diretor, em parte, é tão central que nem se dá mais qualquer importância àquilo que chega no público. Não importa se o espectador entende a linguagem, as imagens ou as personagens da produção. Ele não precisa mesmo entender. O teatro na Alemanha recebe tantos incentivos, que pode muito bem sobreviver sem espectadores. (No caso de um teatro com boa frequência de público, como o Residenztheater de Munique, a receita de venda de ingressos corresponde a 5% da receita total) Não quero dizer com isso que o teatro deva se pautar pelos desejos de um público - desse jeito, teríamos um teatro comercial à la West End ou Broadway, com sua fantasia frequentemente limitada. Eu amo o selvagem, o espetáculo e a fantasia no teatro alemão. Mas eu também desejo um teatro que se importe com as pessoas, na forma de espectadores. Um teatro que chegue nas pessoas - e eu estou me referindo à pessoa por inteiro, não só ao seu intelecto. Se não conseguimos mais penetrar nos corações, a força e o poder do teatro se perdem.

Patricia Fagundes – Tremor é um texto que referencia significativamente a experiência da classe média alemã no contexto contemporâneo. Há pontos em comum com a experiência brasileira, e também muitas diferenças. Em uma entrevista,você comenta que adapta o texto para diferentes países. Que diálogos você imagina entre o texto e o contexto brasileiro?
M.M.
– Beben contém muitas referências a momentos concretos do cotidiano - jogos de computador, guloseimas de infância, aspectos da vida das crianças (nos anos 80), acontecimentos mundiais reais, como terremotos, ou fatos políticos, como as reações da chanceler alemã Angela Merkel ante a queda de um avião na Ucrânia. Todos esses elementos fazem parte de uma mirada muito subjetiva. Da perspectiva brasileira, não é o supermercado sem embalagens no Görlitzer Park de Berlim que é importante. Um diálogo envolveria perguntas como: Quais as narrativas que nosso tempo, nosso agora simula ou dá a ilusão de representar nesse lugar onde vivemos? Do que sentimos saudade? De uma casa em cima da árvore? De montar Lego? Algumas coisas talvez sejam universais, outras se tornam mais instigantes e relevantes pela especificidade: Nem todo mundo no Brasil desejaria cantar em dueto com David Hasselhoff (no Canadá, Hassekhoff foi substituído por William Shattner. No cadeia de associações, os jogadores acabam no Holocausto, que é o nosso trauma alemão sempre atual, nós não conseguimos e nem queremos escapar dele (no Canadá, entretanto, esta passagem do texto não somente era incompreensível, mas também de mau gosto, por isso foram usadas questões de gênero e o #metoo).

Lucca Simas: Tremor (Beben) expõe um quadro de descrença e de crise nas representações, onde as pessoas estão conectadas mas, ao mesmo tempo, isoladas. Como vês a relação entre o real e o virtual hoje, tanto no plano cotidiano quanto no das geopolíticas?
M.M. –
É amedrontador. O virtual, particularmente a internet, não é somente um espaço de refúgio, mas também um espaço à margem da lei, um espaço arbitrário, à margem da verdade. Fake e realidade são, no mundo virtual, uma e a mesma coisa. O indivíduo percebe tudo de forma equivalente. Uma delimitação de "autêntico" e "verdadeiro" - assim como nós podemos defini-los no cotidiano, muitas vezes, a partir de uma sensação, de intuição ou de experiências - tornou-se impossível. Nós somos manobráveis. Estamos à mercê. Somos controláveis. Por algoritmos que nos fazem acreditar que podemos confiar neles, porque eles nos conhecem melhor do que nossos pais ou nós mesmos nos conhecemos (ou por que será que aparece essa propaganda idiota no facebook sempre no momento exato em que acabei de pensar justamente nessa produção? Ou a propaganda já estava ali antes? E o meu pensamento veio depois?) Eu acho também que a explosividade disso se manifesta de fato no plano geopolítico. Não apenas no que tange o direito e a responsabilidade e espaços à margem da lei, mas na sua influência política concreta (como na campanha de Trump ou através de sites de fake news). E realmente problemático é que muitas dessas narrativas conseguem expandir-se livremente, ultrapassando todas as fronteiras (nacionais). Narrativas como as que dizem que apenas mulheres que tem a pele lisa são bonitas, ou homens de vastos cabelos. Eu espero que nós comecemos cada vez mais a ver também chances nessa homogeneização global. Como no caso do #metoo. Que somente no mundo virtual conseguiu encontrar seu poder e o levou, assim, mundo afora.

Tradução: Luciana Waquil