A artificialidade humana
Aproximar o teatro do futuro é subscrevê-lo no presente através de argumentos singulares e, muitas vezes, imprevistos ao que se espera da linguagem. Então é preciso se aventurar e descobrir o futuro naquilo que lhe será originalmente inevitável, para ser passível de representações simbólicas e estéticas. O que não é simples, pois exige mais do que a apropriação de ideias, requer suas completas invenções. O problema está no limite dado às formas que necessitam de construções minimamente reconhecíveis pelo espectador ou nada se estabelecerá como diálogo narrativo. O teatro, por conseguinte, ao menos esse que se volta a prever o amanhã, é a soma entre a plausível especulação retórica e a criação de estéticas surpreendentes.
No novo século, este qual estamos, a dimensão humana tem sido colocada em desconfiança de muitas maneiras, dentre as mais relevantes está a destituição do conceito de sujeito, até então soberano, que tanto oferta ao homem características sobre sua individualidade, portanto de identidade, diferenciando-o entre os pares e aos demais. Todavia, experiências com estruturas fabricadas e programadas com inteligência artificial para autorreconhecimento já derrotaram a segunda parte do argumento. Até mesmos seres inanimados adquirem ou desenvolvem o que parece ser identidade - não há uma definição final sobre isso - após períodos de convívio limitados a uma mesma ambiência e ação. Nada muito diferente do cão que se firma líder da matilha, é verdade. O curioso e enigmático é o igual ocorrer com mecanismos sem emoção, nanorobôs, por exemplo. Mecanismos ou seres? Parece, então, ser a individualização consequência inevitável a quem for revelada percepção de si e de outros. E isso nada tem a ver com sentimentos. Ainda que exista identidade, a primeira parte do argumento ligado ao conceito de sujeito não mais se sustenta. As experiências confirmam agora a individualização surgir pela percepção de pertencimento frente ao todo e ser circunstancial, mutável ao sabor das necessidades e não aos desejos. O sujeito, por fim, deixa de ser o argumento maior ao não ser necessariamente o epicentro daquilo tido por identidade.
A complexidade do assunto exige revisitarmos alguns aspectos de artificialidade. Quem ou o quê, de fato, é artificial? Aquele construído, programado e não natural? Esse com certeza. Mas a artificialização do homem também está em ampla discussão. Após o advento inegável do virtual como realidade ao homem, não seriam artificiais os que determinam suas identidades a partir de suas virtualizações? Responder a tantas questões levará tempo aos filósofos e cientistas. E o paradoxo é nesses quesitos o tempo estar contra nós. Poderemos perceber tarde demais o homem se tornar mais artificial do que natural, enquanto os seres criados parecerão mais reais de que seus próprios criadores. Dilemas de nossa época. E que cabe à arte investigar, desconfiar e invadir.
É exatamente o que acontece em Hideous (Wo)men, do Toneelgroep Oostpool, apresentado no Haus der Berliner Festspiele, durante o Theatertreffen, em Berlim. Um espetáculo jovem, arriscado, imprevisto e em diálogo direto aos questionamentos do futuro mais evidente a partir daquilo que reconheceremos por humano.
O experimento cênico é anunciado no programa sobre como seres originados de maneira artificial investigariam determinados comportamentos próprios dos humanos. Para tanto, os artistas se utilizam de princípios rapidamente reconhecíveis da arte-instalação, da escultura e da performance, compreendendo a figura humana em cena não mais como representação do sujeito, mas como instauração de presenças em busca da afirmação de suas identidades. Acerta ao fornecer às figuras inexpressivas tonalidades de identidades específicas, cujos rostos são máscaras moldadas de faces humanas que podem ou não ser dos próprios atores, não se sabe, ganhando assim a narrativa complexidade ao se valer dos conflitos entre os personagens. Por estarem encobertos, os rostos são idealizações de representação, assim como os conflitos são subversões dos personagens que os fabricam uns aos outros, para através deles chegarem mais próximo ao mais próprio do humano.
A circunstância familiar encenada tanto ao espectador quanto a eles mesmos fortalece a experiência, facilita como acontecimento e farsa em iguais medidas. Os conflitos representados são quase todos da ordem do desejo, esse instinto incontrolável no ser-humano, capaz desde as ideias mais brilhantes até os arroubos mais destruidores. Desejos não são escolhas e se diferenciam na naturalidade ou artificialidade de suas realidades, sem meios tons. Os personagens fingem desejar, então, para reproduzirem o humano; e fingem, sobretudo, pelas expressões mais ordinárias ao desejo, os instintos sexuais. Fabricam-nos. E não nos é possível decifrar se há ali algo sendo descoberto nesses gestos ou se as consequências são realmente derivações programáticas com nuanças caricaturais copiadas de nós mesmos.
Erotização, ausência de desejo, masturbação, sedução, atração sexual, repulsa sexual, fetiche, dominação, submissão, incesto, estupro, aborto, violência física, sangue. A sequência narrativa é forte e inesperada. Durante boa parte do espetáculo, o cenário, em quase ininterrupto lento movimento de rotação, é composto por três ambientes distintos, coloridos e paradoxalmente assépticos, sem quaisquer características de personalidade, radicalmente genéricos e falsos. Um cenário que sugere ser mesmo apenas uma cenografia para o exercício dos personagens jovens e idosos, homens e mulheres que circulam pelos nichos, que por vezes estão simplesmente vazios, obrigando o espectador a observar a ausência mais do que a presença. Ao tirar a figura do enquadramento, somos levados a perceber no seu retorno o quanto nela há de artificialidade, caso contrário inevitavelmente nos acostumaríamos aos contornos das identidades sugeridas, assumindo-os meramente. Os instantes de esvaziamento, portanto, ampliam o estranhamento e a necessária lembrança de que aqueles em cena não representam pessoas, mas seres que representam para si mesmos pessoas quais não são.
Contrapondo-se ao contexto dessa experiência metarrepresentacional, e não metateatral é bom diferenciar, as figuras passam a surgir em diversos nichos, rompendo a ilusão de convívio temporal, até então, trazida pelo movimento rotativo. Com a mesma figura em mais de um nicho, a temporalidade ganha velocidade sequencial, como se a fábula assumisse a linearidade de acontecimentos e protagonismo específico. O próximo movimento de verticalização narrativo ocorre quando um personagem é desdobrado em diversas presenças em um mesmo quadro. Deixa de existir, então, o tempo como linha narrativa, e o espetáculo passa a limitar a ação isoladamente ao protagonismo da presença. É nesse instante que o espetáculo se torna mais interessante e mais problemático ao que se propõe.
O interesse se dá na facilidade com que subverte a narrativa qual já está acostumado o espectador. Na sequência que passa a ter o corpo e o desejo como discurso, o limite final é a personagem mulher descobrir com curiosidade neutra infantil as próprias entranhas a partir do sexo. Expurga do próprio interior tripas, restos, coágulos, possivelmente órgãos e carnes, lambuzando-se de sangue, em um ato longo que traz nojo e desespero a alguns na plateia. Replicada em várias dela mesma em cena, a personagem realiza a investigação sobre si simultaneamente por diversas maneiras, como se assistíssemos ao gesto em suas variantes no tempo e no físico, em uma espécie de expansão ao projeto cubista. A leitura sobre a violência ao feminino é evidente, e colam-se aos quadros discursos metafóricos sobre propriedade do corpo e, por que não?, do desejo. A performatividade narrativa interessa menos ao gesto dos atores e mais ao entendimento de ser a performance um movimento tão artificial como os próprios personagens. Desse modo, cria-se o problema de como lidar com a performance no futuro se esta tem como principal matéria o corpo, que por sua vez será artificial frente à realidade. Querer responder ou ao menos trazer a questão ao teatro é realmente uma grande e necessária manifestação de incômodo com os mecanismos de representação da cena atual estacionada em regras seguras e bem estabelecidas.
No entanto, ao valorizar o feminino expondo suas perspectivas a partir de discursos específicos, o espetáculo acaba recuperando aos personagens o sentido de sujeito, qual descrito aqui inicialmente. Está nisso, portanto, o problema a ser elaborado. Será esse o aspecto futuro a ser descoberto por nós, o da inversão, quando a identidade determinará ao ser seu estado de sujeição? Alguns filósofos apontam exatamente para esse raciocínio. Assim como o espetáculo. Mas sujeito a quem ou ao quê? Hideous (Wo)men parece sugerir tratar-se não mais do desejo ou do corpo, e sim da procura por um estado corpóreo capaz de nos fazer reviver o existir em uma realidade artificializada pelo real. Suzan Boogaerdt, Bianca van der Schoot, Susanne Kenned ainda precisaram do corpo, matéria narrativa e simbólica concretamente presente no palco para nos falar sobre a falta física e o horror do humano quando corporificado. Superar isso (se é possível isso) seria mergulhar ao mais fundo do oceano e sem fôlego ao retorno. Por enquanto, ainda parecem seguras o suficiente para voltarem à superfície quando bem desejarem, mas com boas doses de uma identidade artística particular.
HIDEOUS (WO)MEN
Criação: Suzan Boogaerdt, Bianca van der Schoot, Susanne Kenned
Com: Suzan Boogaerdt, Bianca van der Schoot, Susanne Kenned, Nettie Blanken, Erika Cederqvist e Nina Fokker
Produção: Toneelgroep Oostpool
Foto: Sanne Peper