Dois caminhos para descobrir a herança colonial
Uma pessoa da Europa Central presente a um festival como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) terá a sensação de que muitos dos que estão ali reunidos encontram-se ligados uns aos outros por meio da história ininterrupta de uma colonização violenta do continente latino-americano. A pessoa adentrará em vasto campo de dívidas morais transatlânticas, que nunca poderão ser quitadas através de trabalho. Mas, com toda certeza, essa questão deve ser colocada em pauta. Transformá-la em teatro não é a pior de todas as opções.
Essa - ou algo assim - pode ter sido a ideia do diretor artístico Antônio Araújo, juntamente com sua equipe, para a programação deste ano do festival, quando decidiram agendar praticamente lado a lado duas novas peças que abordam o tema da herança colonial da América Latina de forma completamente diferente uma da outra.
Cidade Vodu reflete sobre a história colonial do Haiti e a situação atual dos refugiados haitianos no Brasil. A produção performativa, de grande força imagética e incrementada por curtas dramatizações, não se intimidou pelo padrão climático chuvoso de São Paulo, submetendo o público a um percurso externo, a céu aberto, mesmo que a todo o momento ameaçasse cair uma tormenta.
Se Cidade Vodu ainda foi uma noite focada no tema e excessiva na transposição cênica, dois dias depois foi o caso de uma noite tematicamente transbordante, cuja transposição para o palco, entretanto, ganhara uma moldura clara, a começar pelo impressionante cenário de Daniela Thomas e Felipe Tassara. A Tragédia Latino-Americana é um panorama épico ambicioso da América Latina que utiliza textos literários modernos para a elucidação caleidoscópica da história colonial continental. A combinação dos textos literários não tem como objetivo compor um roteiro conclusivo. A diversidade dos textos resulta em um quebra-cabeça associativo, que, de passagem, aponta para o poder da linguagem e da literatura.
A América Latina reconhece a si mesma em textos de autoras e autores do México, de Cuba, do Equador, do Brasil, do Uruguai, da Argentina e do Chile. A intenção não é criar uma história documental resumida, mas muito mais um ensaio cênico que suscita perguntas - isso mais de 500 anos depois de um certo Cristóvão Colombo anotar em seu Diario de a bordo del primer viaje de Cristóbal Colón que os nativos que habitavam a ilha de Hispaniola seriam bastante ingênuos e que se ofereceriam a "partilhar seus bens" com qualquer um. Aí tem início a exploração - "contas de vidro em troca de metais preciosos" - e um genocídio completo de povos indígenas nativos. Uma relação de força que ainda hoje questiona a forma como os descendentes dos conquistadores europeus se relacionam com os descendentes dos nativos da América Latina, e se é possível interpretar a história da perdição latino-americana como a violentação de um continente.
A essa ideia somos levados por um dos textos em A Tragédia Latino-Americana. Em Aniversário de Marilena do Nascimento, a escritora brasileira Dora Limeira conta a história do estupro de uma jovem que, nove meses após o abuso sexual, dá à luz uma criança num banheiro, mata o bebê e acaba na prisão. Numa noite de teatro em que se conta a História por meio de histórias, deve-se supor que tanto o dramaturg e jornalista brasileiro Ruy Filho, responsável em dialogar com Felipe Hirsch sobre a seleção dos textos feita pelo diretor, tenham uma ideia na cabeça ao escolherem justamente esse relato de uma violentação para fazer parte do corpus de textos. No decorrer do ano, será produzida a variante cômica da história latino-americana. O diretor será novamente Felipe Hirsch, que, agora, com a versão trágica da história latino-americana, aposta em formas de encenação bastante diferenciadas.
Os recursos cênicos variam de texto para texto. Para a história do estupro, de grande carga emocional, Hirsch escolhe uma pacata forma de relato. O microfone circula de mão em mão, as atrizes e atores alternam-se na narração de trechos do texto como numa cobertura jornalística. Antes do intervalo, a montagem transforma a Pequeña Canción Trágica, de J. R. Wilcoocks (Argentina), numa obra de arte total. Julia Lemmertz, em diferentes posições horizontais, recita o texto sobre a eterna necessidade de escrever. Sobre o palco deslizam rapidamente atmosferas criadas pela luz, como se presenciássemos o decorrer de dias e anos num turbilhão. Que isso seja tão impressionante tem muito a ver com o cenário de Daniela Thomas e de Felipe Tassara. Eles se "contentam" com uma cadeia de montanhas de blocos de isopor. No começo, esses blocos dominam o palco como uma muralha intransponível. Ao longo da noite, o maciço central branco é desmontado e muitas vezes rearranjado, sempre em novas formações. O resultado são silhuetas tão arcaicas e impressionantes como as paisagens na América Latina podem ser.
Se A Tragédia Latino-Americana deita um olhar literário sobre o continente, a equipe de Cidade Vodu se concentra nas relações recíprocas entre dois países latino-americanos, cada qual lutando com problemas bem diferentes: o Haiti foi um dos Estados mais ricos da América Latina e hoje se encontra entre os menos desenvolvidos do mundo; e o Brasil, que teve um desenvolvimento comparável ao dos "tigres asiáticos", vê-se hoje confrontado com enormes problemas político-econômicos e enredado em escândalos de corrupção. Neste contexto, há um movimento migratório e de refugiados da ilha caribenha em direção ao Brasil. Desde a metade dos anos 1990, estima-se que mais de três milhões de haitianos, a maioria de origem africana, tenham imigrado, o que também pode ser atribuído em parte ao terremoto devastador de 2010, que fez com que os pobres ficassem ainda mais pobres e levantou a pergunta sobre onde foi parar a ajuda financeira internacional e o que fizeram de fato as forças de auxílio estrangeiras que deveriam ajudar os haitianos.
Nesse ponto de confluência, o autor e diretor José Fernando de Azevedo montou um pacote cênico para o qual não precisou de um cenário, ele o encontrou pronto e sequestrou os espectadores até ele: um terreno com um casarão em ruínas no centro de São Paulo. Ali começava um drama em estações muito especial. Não importa em que ponto do terreno cheio de escombros os espectadores acompanhassem o caminho de migração dos haitianos, estariam sempre presentes outras perspectivas no pano de fundo grandioso e quase que avassalador da paisagem em ruínas. Por um bom tempo, porém, a peça trata da essência mítica da cultura haitiana.
Sobre a situação dos haitianos no Brasil, José Fernando de Azevedo e o Teatro de Narradores pouco acrescentam. Por que motivo um ator com um riso estridente quer ser ao mesmo tempo anjo da morte e entertainer também é algo que não fica compreensível, pois a direção reserva muito pouco tempo para cada estação, de modo que as situações encenadas e as projeções de vídeo nas paredes em escombros não conseguem desenvolver uma força situativa. O espectador corre de uma imagem grandiosa até a próxima, mas não fica claro em que medida Cidade Vodu diz respeito às especificidades atuais da história colonial latino-americana. Em compensação, é tocada no final uma versão cover de Ne me quitte pas, de Jacques Brel. Passaram-se pouco mais de duas horas. As pessoas deixam o terreno com as ruínas por uma escada lateral e se dão conta de que nesta noite de fato não choveu a cântaros.
CIDADE VODU
Criação: Teatro de Narradores
Dramaturgia e encenação: José Fernando de Azevedo
Atores: Renan Tenca Trindade, Teth Maiello
Atores convidados: Joel Aurilien, Junior Odnel Barthelemy, Patrick Dieudonne, Roselaure Jeanty
Direção musical: Helio Flanders
Músicos em cena: Helio Flanders, Dumoulin Louis Edvard, Joel Aurilien, Wilken Pierre Louis
Arquitetura e espaço cênicos: Arianne Vitale, Cris Cortílio
Figurino: Kabila Aruanda
Vídeo: Danilo Gambini, Patrick Dieudonne
Assistente de direção: Melissa Campagnoli
Direção de cena: Victor Gally
Contrarregra: Pedro Pedruzzi
Foto: Helio Flanders
A TRAGÉDIA LATINO-AMERICANA
Direção geral: Felipe Hirsch
Elenco de A Tragédia Latino-Americana: Caco Ciocler, Camila Márdila, Danilo Grangheia, Georgette Fadel, Guilherme Weber, Javier Drolas, Julia Lemmertz, Magali Biff, Manuela Martelli, Nataly Rocha, Pedro Wagner
Música escrita, arranjada e dirigida por Arthur de Faria
Interpretada pela Ultralíricos Arkestra: Arthur de Faria (piano e sintetizadores), Adolfo Almeida Jr. (fagote e efeitos), Mariá Portugal (bateria, percussões e tímpanos), Gustavo Breier (processamentos eletrônicos), Georgette Fadel (trompete), Luccas Bracca (baixo acústico e elétrico), Pedro Sodré (guitarras e overdrives)
Direção de arte: Daniela Thomas e Felipe Tassara
Iluminação: Beto Bruel
Figurinos: Veronica Julian
Preparação vocal: Simone Rasslan
Coreógrafa e preparação corporal: Renata Melo
Codiretora: Isa Teixeira