Voz a ser ouvida
Foi e é pela música que o povo negro transformou sua dor e sua revolta em grito. Dos navios negreiros às senzalas, nas plantações e nos roçados, nos terreiros e nas ruas, homens e mulheres obrigados pela história mundial à condição de marginalizados passaram a cantar suas mazelas como hinos de luta pela liberdade. Em show apresentado na última sexta-feira (4), na Sala Jardel Filho, no Centro Cultural São Paulo, o músico africano Neo Muyanga levou ao palco uma junção de composições que fazem parte dos movimentos de libertação acontecidos na África do Sul durante o apartheid. Uma colcha de retalhos de uma história presente até hoje no cotidiano do povo negro.
Revolting Music nos contextualiza em um tempo mais antigo, nas décadas de 1940 a 1990, na África do Sul, auge da polarização entre negros e brancos. Com violão e piano, Muyanga cria diante da plateia sua própria narrativa musicalizada, explicada por ele por meio de depoimentos e lembranças. A possibilidade de gravar sua voz e juntá-la como recortes em uma espécie de coro faz do músico um coletivo. Há uma metáfora possível de que, sim, podemos ser muitos, e precisamos ser ouvidos.
As músicas cantadas na maioria em zulu e soho, que são línguas nativas africanas, não têm suas letras compreendidas, mas a construção da cena do espetáculo nos possibilita o entendimento da atmosfera. O palco com penumbra e a luz em tons mais frios que acompanha Muyanga ratificam a tristeza que perpassa o repertório. Enquanto isso, a expressão vocal de Neo Muyanga enfatiza a revolução cantada. São tons de voz que em alguns momentos se assumem gritos, passam a sublinhar o protesto presente nas canções.
Quando Revolting Music acaba é que o discurso tenciona. A expansão de sentido e tempo das revoltas ganha os contornos contemporâneos, pontuado por um Brasil erguido pela força negra, mas ainda extremamente racista. Subitamente rompida a calma da apresentação de Muyanga, um grupo de atores, homens e mulheres negros “invadem” os corredores entre as plateias e impõem seus cantos, ditos com olhares questionadores e que revelavam urgência.
Aqui, neste momento, o canto já não é só música. É discurso que une referências também da literatura e do cotidiano de um país marcado pelas intolerâncias. A performance Em Legítima Defesa, dirigida por Eugênio Lima, fala da gente assassinada pela sociedade por preconceito de raça, de gênero e de classe. Fala de um genocídio que acontece diariamente nas favelas, nas ruas, nas escolas e trabalhos, mas silenciado pelas autoridades. Mostra que o passado ainda está presente, e que a África também é aqui.
É sintomático perceber, por exemplo, os números reais trazidos pela performance sobre o massacre institucional feito pela Polícia Militar brasileira: a cada quatro pessoas mortas por um PM, três delas são negras, como repetem inúmeras vezes os atores, utilizando um trecho de Capítulo 4, Versículo 3, dos Racionais MCs. É sintomático também que uma apresentação como essa aconteça numa São Paulo testemunha de violência desmedida da polícia contra jovens que questionam o governo sobre o fechamento de escolas públicas ou sobre o desvio do dinheiro que pagaria a merenda desses estudantes.
O que une Revolting Music e Em Legítima Defesa não é apenas o olhar de um povo sobre sua história, mas o olhar de uma nação sobre aquilo que nos diminui: o preconceito. Seja no trabalho de Neo Muyanga ou na ação performática dos atores dirigidos por Eugênio Lima, o questionamento predominante é sobre o respeito e a igualdade. E ali não estão apenas os negros, mas também as mulheres, os homossexuais, os refugiados, enfim, aqueles que lutam todo dia pelo direito de ser quem são.
REVOLTING MUSIC
Criação, dramaturgia, direção musical e atuação: Neo Muyanga