O CAPOTE
Soraya Belusi (MG), em Belo Horizonte, 10/11/2015
Conflito entre o novo e o velho, que Gógol descreveu em conto de 1842, segue atual na montagem de Yara de Novaes
Rodolfo Vaz, ex-Grupo Galpão, se destaca ao interpretar um funcionário público medíocre que vive e morre por um capote novo

O "novo" e o "velho" se encontram em "O Capote"

“Não é bom. Não é apenas bom. É o novo”, profere um dos personagens-narradores de O Capote, a partir do conto original de Nikolai Gógol, escrito em 1842. Com adaptação de Drauzio Varella e dramaturgismo de Cássio Pires, Akaki Akakievitch é apresentado como um homem incapaz de contar a própria história, um fantasma que compartilha com o público, mediado por outras vozes, seu martírio para adquirir um casaco, para aceitar o novo.

Rodolfo Vaz, ex-integrante do Grupo Galpão, traz para a cena todo o repertório acumulado ao longo dos anos na arte de construir personagens patéticos e apaixonantes. Seu Akaki Akakievitch é meio curvo, com olhos estatelados, braços presos ao corpo, cabelo lambido a la Jerry Lewis e gago - fragilidade que é potencializada pela presença enérgica dos atores Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas Boas, que cumprem a função de narradores-opressores-personagens dessa história. É como se o novo manipulasse o antigo: lhe dissesse quando parar de falar, como agir, o que fazer. “Eles me inibem”, diz Akaki a certa altura. A mesma sensação é sentida pelo espectador, como se este também tivesse que se guiar pelos imperativos proferidos a todo o momento.

O jogo estabelecido entre Akaki e seus “parceiros” de cena nos remete ao embate entre o “novo” e o “antigo” implícito na narrativa, sendo Akaki o representante desse tempo que já passou, enquanto os outros dois se configuram como exemplares de uma maneira “contemporânea” de representação. Há um diálogo entre os tempos: a dupla nos dias atuais, Akaki uma figura ainda presa ao passado. Akaki é moldado com todos os contornos dramáticos, com requintes de modulação de voz, construção corporal, gags clownescas, em nenhum momento abandonados por Rodolfo. Em contrapartida, Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas Boas adotam uma linguagem mais “performativa”, com um trânsito permanente entre ator-personagem, como se evidenciassem o caráter ficcional do teatro em contraponto ao registro dramático empreendido pelo personagem principal.

Esses dois registros geram uma tensão inicialmente incômoda ao espectador, mas, ao longo do espetáculo, transborda também nas opções de encenação de Yara de Novaes, que constrói o espaço da ação com referências a um passado-futurista – com as paredes de azulejo, quase assépticas, gélidas, num misto de repartição pública e laboratório – que são preenchidas por projeções em vídeo. Embora a cena se passe no passado, ela não se restringe a datar e encerrar a presença desse homem que “deixou São Petersburgo como se ali nunca estivesse estado”. Esses dois tempos/mundos se encontram na cena em que Akaki destrói o cenário, revelando o “teatro” que se constrói por trás dele.

A ironia de Gógol encontra um corpo pronto para evidenciá-la em Rodolfo, cuja criação é capaz de condensar o cômico e o trágico, o que se traduz em cenas como a em que Akaki experimenta pela primeira vez o capote novo, ou a do sapateado para espantar o frio na chegada à repartição e ainda o momento em que interpreta uma canção de Raul Seixas adaptada ao contexto russo. E é justamente essa poesia inicial que permite que a ruptura final de Akaki com sua condição subserviente, depois de morto, se efetive. Uma espécie de redenção do personagem, como se alertasse ao público que Akaki ainda está vivo e está entre nós.