PROJETO BRASIL
Helena Carnieri (PR), em Curitiba, 05/10/2015
Estreia da companhia brasileira de teatro traz lampejos de ansiedade de uma cultura em transição
"projeto brasil" reflete experiências que grupo curitibano recolheu em dois anos de andanças pelo país

Risco Brasil

Não é mais seguro ir ao teatro em Curitiba. Se antes o público podia se esconder afundado na poltrona diante de interações sutis, a companhia brasileira voltou para casa com chamegos dignos de um Teatro Oficina. Assim começaram os dois dias de pré-estreia do projeto brasil na cidade, dias 26 e 27 de setembro, no Teatro José Maria Santos.

Lembrando a forma como aquele exuberante grupo paulistano pensou o país em sua montagem histórica de O Rei da Vela, em 1967, naquela que foi a real estreia do até então engavetado texto de Oswald de Andrade (escrito em de 1933), o grupo curitibano ecoa em projeto brasil vozes das ruas, salas de ensaio e salas de estar compartilhadas em suas andanças teatrais dos últimos dois anos (com patrocínio de manutenção da Petrobras).

Naquele pré-AI-5, a estética era de um desbunde tropicalista. No trabalho de 2015, o preto impõe um luto nacional. Vivemos um momento em que a discussão de nossa cultura se torna premente, e essa é uma das matérias utilizadas pela companhia brasileira.

Aquilo que ela traz à cena é considerado pelo grupo um ponto de partida que poderá ter desdobramentos posteriores. São, nas palavras do diretor Marcio Abreu, “ações, performances, imagens e pensamentos articulados entre si”, mas que formam um “conjunto heterogêneo”. Essa informação é fundamental para apreender o espetáculo, que não se parece com um espetáculo, especialmente pela longa duração dos discursos selecionados para fazer parte do texto.

Uma das fontes do grupo na criação de brasil foram textos, muitos textos antigos e novos que leem o país de dentro e de fora. Textos escritos, cantados, visuais. Alguns não falam do Brasil, mas são colocados como desejo por uma transformação local. Um deles é um discurso do ex-presidente uruguaio José Mujica, que dura quase 20 minutos, entoado pelo ator Rodrigo Bolzan num espanhol de excelente pronúncia.

Na fala do político do país vizinho, considerações sobre o novo homem em que muita gente ainda acredita. Outro discurso é da ministra da Justiça francesa Christiane Taubira, que fala sobre a adoção de crianças por casais homossexuais naquele país, mas incendeia a plateia como um manifesto muito próprio para o aqui e agora.

Desde o início do espetáculo a imagem da atriz Gioavana Soar desequilibrada sobre saltos altos faz pensar no risco Brasil, esse misto de incertezas jurídicas e econômicas, precariedade e má fé que tira de cada de um de nós competitividade, alegria, esperança no futuro.

Contra o jeitinho do enjambre, a companhia investe num palco que gira – e funciona. Um círculo inscrito em outro maior, com mecanismo rotativo, é usado em apenas duas cenas, economia que enfatiza o impacto visual gritante.

Em outro desses momentos marcantes, Giovana performa na Linguagem de Libras um texto muito representativo da cultura popular brasileira. Na sequência, munida de tinta nas mãos, refaz os movimentos, agora com o áudio como fundo e colorindo-se a cada toque no corpo, como se o mensageiro se maculasse para entregar a mensagem. O primeiro escândalo de decodificação explícita do teatro brasileiro.

Não poderia faltar a violência que nos cerceia a vida, e ela é sugerida de forma inusitada ao final, com o uso de balões. A veia festeira brasileira surge ao mesmo tempo em que esse outro risco Brasil – o risco de morte – incomoda ao se fazer notar.

Ao longo de toda a performance, um fio unificador é a música, necessária num quadro que reflete o país da ginga. Qualidade musical misturada ao mundo cão, em letras que fazem um mix de imagens do passado e do presente criadas e trazidas ao vivo por Felipe Storino. Também em cena está Nadja Naira, que ainda assina a luz ao lado de Beto Bruel.

Tem-se a sensação de não se haver presenciado um espetáculo, mas encontrado ideias. Algumas boas ideias que materializam-se em cenas lindas. Outras, cruas, são entregues em discursos pesados que pedem para ser aliviados da palavra, ainda que ela venha de forma lírica.