
Às penas nem tão duras de uma cena
No dicionário Priberam da língua portuguesa, eis a primeira acepção que consta no verbete “pena”: cada uma das estruturas ceratinizadas que revestem o corpo de uma ave. Este pequeno substantivo feminino, contudo, traz diversas outras definições. A polissemia desta palavra inclui até a metáfora para a própria literatura, dado o fato de que tal revestimento natural dos pássaros serviu por séculos como instrumento de escrita para poetas, filósofos e estudiosos. Eu escrevo sobre uma “Pena” específica: o solo de dança de Silvia Wolff dirigido por Flávio Campos, estreado em Santa Maria em março deste ano. Com este título, a obra nos aponta as diversas camadas que a atravessam, as quais compõem um espetáculo que me arrebatou. Peço a licença, para tomar a minha pena e desvelar algumas delas.
Pena: compaixão, piedade, comiseração. Sentimento por essência controverso, este foi a origem do termo que batizou o espetáculo. Silvia foi por longo tempo bailarina de alta performance e carreira invejável – iniciada nos seus estudos junto à School of American Ballet e na Joffrey Ballet School, ambas em Nova Iorque, e coroada por sua atuação profissional junto a companhias como o Berlin Opera Ballet e o Pennsylvania Ballet. Aos seus 34 anos, porém, subitamente tudo sua vida mudou de rumo. Após um AVC que a deixou em coma por três dias e uma cirurgia que lhe devolveu a chance de viver, a bailarina deixou o hospital com muitas sequelas e de cadeira de rodas. Algum tempo depois de muita fisioterapia, Silvia estava junto a um amigo, a quem afirmara que jamais voltaria à cena, quando encontrou uma conhecida do balé em São Paulo, que a viu de bengala e sentenciou: “Que pena, tu era tão bonita...” Naquele momento, Silvia não soube como responder, mas posteriormente, um amigo querido, Paulo Paixão, lhe disse: “Sílvia, pena é o nome de um espetáculo!” E assim foi.
Pena: sanção aplicada como punição; castigo, condenação, penitência. Com seu “novo” corpo, Silvia aos olhos de muitos parecia ter sido condenada pela vida a uma pena perpétua. Sua sentença seria a de reaprender a ser, se mover e principalmente ser vista no mundo, tal como se em um grand jeté partisse do glamoroso pedestal da mais alta performance atlética e desastrosamente aterrissasse sobre o solo movediço da deficiência. Este último, infelizmente, é por senso comum intrinsecamente arraigado em nossa sociedade à quarta acepção de pena: sofrimento; aflição, tristeza, amargura, pesar. No entanto, a maior fonte desse pesar não provém de uma condição física em si, mas do capacitismo, este olhar que exclui e oprime pessoas com base na ideia de que existe um “padrão” de corpo com determinadas capacidades que é considerado como “normal” e que a deficiência diante dele implica sempre uma incapacidade.
Mas esta pena aqui não vai cair em tal armadilha sociossemântica: nem condenação, nem compaixão, nem aflição. A pena que Silvia traz a seu espetáculo plana suave e ligeira por sobre tudo isso: ela se faz instrumento potente de voo, um símbolo da leveza e da liberdade, e traça irônica e cenicamente uma referência fundamental à carreira da própria bailarina – a figura do pássaro-personagem de um dos balés de repertório mais conhecidos no mundo da dança, o Lago dos Cisnes. “Pena”, de forma muito aguda e poética, reconstrói esteticamente este salto quântico de Silvia, que corajosamente escolheu após um AVC, ao invés de fugir da dança clássica e de seu habilismo excludente e colonizador, mergulhar ainda mais nela em seus estudos acadêmicos. Foi assim que nasceu o “Balé Possível”: metodologia de ensino e criação em dança desenvolvida por Silvia – atualmente professora universitária no curso de dança da UFSM – durante seu projeto de pós-doutorado desenvolvido em 2024 junto à Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa.
Assim, com este corpo balético por formação, diverso por condição e absolutamente eloquente pela ação em cena, Silvia e Flávio nos levam a passear através da transição de uma figura que de início se revela paulatinamente sentada em uma cadeira em meio a um breu sombrio e então cruza o palco em um corredor diagonal de luz rumo a um dos cantos frontais do palco para se acercar de um tutu branco – o mesmo modelo usado no Lago dos Cisnes – e em torno dele se encontrar e se desencontrar até por fim tropegamente vesti-lo. Somente estas cenas, de movimentação potente e escultoricamente delineadas pela cortina de fumaça com a iluminação poética de Raquel Guerra, já valeriam a ida ao teatro, mas esse é só o começo. Na sequência, dezenas de penas são quase paridas pela bailarina, que trava um jogo com elas em tom jocoso, ora tentando inutilmente organizá-las contra sua indelével instabilidade, ora soltando-as como folhas ao vento, ora se atendo aos detalhes singelos de uma única pluma. Na composição do espetáculo, cabe ainda ressaltar a escolha da trilha sonora composta por Daniel Wolff, que mistura composições próprias com releituras de temas clássicos, os quais exaltam e destacam o caráter de cada cena, fluindo dos acordes suaves ao heavy metal.
O jogo de imagens que se contrapõem com a própria figura de Silvia em cena é potente – de um lado, esta mulher previamente condenada pelos olhares alheios porque desprovida de simetria: enquanto um braço traz a movimentação leve e suave da bailarina “perfeita”, o outro evidencia a “deformidade” rígida da deficiência; enquanto uma perna desliza e plana sobre o pé em ponta, a outra precisa ser puxada. Este paradoxo materializado de forma tão singular por Silvia atinge em cheio a discussão sobre o capacitismo geral da sociedade, que a julga digna de pena. Assim nasce, regada a ironia, uma crítica ao habilismo radical que alimenta o meio extremamente competitivo e excludente do balé clássico. A provocação para esta reflexão não deixa o público incólume quando a bailarina genuinamente se esforça para se alinhar e então pergunta à plateia, com um sorriso quase maroto no rosto, se está simétrica, ou se está bonita. Faz-se onipresente o desconforto desta pergunta nada retórica que mexe diretamente com os preconceitos tácitos de quem a observa: o silêncio constrange; a fala também.
E as críticas sociais nesta obra vão muito além da pauta do capacitismo: nestas muitas camadas de significados, fica evidente a condenação social da mulher a uma imposta e suposta perfeição através de estereótipos paradoxalmente desenhados através do corpo de Silvia: a figura da bruxa, que é “deformada” e “feia”, e se arrasta com seu cajado, se opõe à princesa bailarina, que é bela e suave em cada gesto. E esta beleza estereotipada também se mostra racializada: ela obriga a bailarina a literalmente se enterrar numa branquitude para poder representar um padrão que se revela inalcançável e tóxico na prática. No final, ninguém sai ileso. Desvela-se a inútil tentativa de organizar todas estas penas, que também são nossas. Fica em cada um de nós a missão de encontrar o seu próprio balé possível e dançar com a imperfeição de nossas vidas.
Bailarina Intérprete-criadora: Silvia Susana Wolff
Direção: Flávio Campos
Direção de Produção: Lucca Adams Pilla
Assessoria de Imprensa: Roberta Amaral
Cenografia e Figurinos: Flávio Campos e Silvia Wolff
Trilha Sonora Original: Daniel Wolff
Trilha Sonora Adicional: Peter Ilich Tchaikovsky, Ole Torkelsen
Iluminação: Raquel Guerra
Operação de Som: Walcker Martini
Contraregragem e Apoio Técnico: Gabrielly Eggers Neumann
Design Gráfico: Pedro Henrique Azevedo
Fotos: Bruna Brtoldo e César Schirmer dos Santos




