PENA
Consuelo Vallandro, Porto Alegre (RS), 29/11/2025
Estreia solo de dança de Silvia Wolff dirigido por Flávio Campos
Foto de Bruna Bertoldo

Às penas nem tão duras de uma cena

 

No dicionário Priberam da língua portuguesa, eis a primeira acepção que consta no verbete “pena”: cada uma das estruturas ceratinizadas que revestem o corpo de uma ave. Este pequeno substantivo feminino, contudo, traz diversas outras definições. A polissemia desta palavra inclui até a metáfora para a própria literatura, dado o fato de que tal revestimento natural dos pássaros serviu por séculos como instrumento de escrita para poetas, filósofos e estudiosos. Eu escrevo  sobre uma “Pena” específica: o solo de dança de Silvia Wolff dirigido por Flávio Campos, estreado em Santa Maria em março deste ano. Com este título, a obra nos aponta as diversas camadas que a atravessam, as quais compõem um espetáculo que me arrebatou. Peço a licença,  para tomar a minha pena e desvelar algumas delas.

Pena: compaixão, piedade, comiseração. Sentimento por essência controverso, este foi a origem do termo que batizou o espetáculo. Silvia foi por longo tempo bailarina de alta performance e carreira invejável – iniciada nos seus estudos junto à School of American Ballet e na Joffrey Ballet School, ambas em Nova Iorque, e coroada por sua atuação profissional junto a companhias como o Berlin Opera Ballet e o Pennsylvania Ballet. Aos seus 34 anos, porém, subitamente tudo sua vida mudou de rumo. Após um AVC que a deixou em coma por três dias e uma cirurgia que lhe devolveu a chance de viver, a bailarina deixou o hospital com muitas sequelas e de cadeira de rodas. Algum tempo depois de muita fisioterapia, Silvia estava junto a um amigo, a quem afirmara que jamais voltaria à cena, quando encontrou uma conhecida do balé em São Paulo, que a viu de bengala e sentenciou: “Que pena, tu era tão bonita...” Naquele momento, Silvia não soube como responder, mas posteriormente, um amigo querido, Paulo Paixão, lhe disse: “Sílvia, pena é o nome de um espetáculo!” E assim foi.

Pena: sanção aplicada como punição; castigo, condenação, penitência. Com seu “novo” corpo, Silvia aos olhos de muitos parecia ter sido condenada pela vida a uma pena perpétua. Sua sentença seria a de reaprender a ser, se mover e principalmente ser vista no mundo, tal como se em um grand jeté partisse do glamoroso pedestal da mais alta performance atlética e desastrosamente aterrissasse sobre o solo movediço da deficiência. Este último, infelizmente, é por senso comum intrinsecamente arraigado em nossa sociedade à quarta acepção de pena: sofrimento; aflição, tristeza, amargura, pesar. No entanto, a maior fonte desse pesar não provém de uma condição física em si, mas do capacitismo, este olhar que exclui e oprime pessoas com base na ideia de que existe um “padrão” de corpo com determinadas capacidades que é considerado como “normal” e que a deficiência diante dele implica sempre uma incapacidade.

Mas esta pena aqui não vai cair em tal armadilha sociossemântica: nem condenação, nem compaixão, nem aflição. A pena que Silvia traz a seu espetáculo plana suave e ligeira por sobre tudo isso: ela se faz instrumento potente de voo, um símbolo da leveza e da liberdade, e traça irônica e cenicamente uma referência fundamental à carreira da própria bailarina – a figura do pássaro-personagem de um dos balés de repertório mais conhecidos no mundo da dança, o Lago dos Cisnes. “Pena”, de forma muito aguda e poética, reconstrói esteticamente este salto quântico de Silvia, que corajosamente escolheu após um AVC, ao invés de fugir da dança clássica e de seu habilismo excludente e colonizador, mergulhar ainda mais nela em seus estudos acadêmicos. Foi assim que nasceu o “Balé Possível”: metodologia de ensino e criação em dança desenvolvida por Silvia – atualmente professora universitária no curso de dança da UFSM – durante seu projeto de pós-doutorado desenvolvido em 2024 junto à Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa.

Assim, com este corpo balético por formação, diverso por condição e absolutamente eloquente pela ação em cena, Silvia e Flávio nos levam a passear através da transição de uma figura que de início se revela paulatinamente sentada em uma cadeira em meio a um breu sombrio e então cruza o palco em um corredor diagonal de luz rumo a um dos cantos frontais do palco para se acercar de um tutu branco – o mesmo modelo usado no Lago dos Cisnes – e em torno dele se encontrar e se desencontrar até por fim tropegamente vesti-lo. Somente estas cenas, de movimentação potente e escultoricamente delineadas pela cortina de fumaça com a iluminação poética de Raquel Guerra, já valeriam a ida ao teatro, mas esse é só o começo. Na sequência, dezenas de penas são quase paridas pela bailarina, que trava um jogo com elas em tom jocoso, ora tentando inutilmente organizá-las contra sua indelével instabilidade, ora soltando-as como folhas ao vento, ora se atendo aos detalhes singelos de uma única pluma. Na composição do espetáculo, cabe ainda ressaltar a escolha da trilha sonora composta por Daniel Wolff, que mistura composições próprias com releituras de temas clássicos, os quais exaltam e destacam o caráter de cada cena, fluindo dos acordes suaves ao heavy metal.

O jogo de imagens que se contrapõem com a própria figura de Silvia em cena é potente – de um lado, esta mulher previamente condenada pelos olhares alheios porque desprovida de simetria: enquanto um braço traz a movimentação leve e suave da bailarina “perfeita”, o outro evidencia a “deformidade” rígida da deficiência; enquanto uma perna desliza e plana sobre o pé em ponta, a outra precisa ser puxada. Este paradoxo materializado de forma tão singular por Silvia atinge em cheio a discussão sobre o capacitismo geral da sociedade, que a julga digna de pena. Assim nasce, regada a ironia, uma crítica ao habilismo radical que alimenta o meio extremamente competitivo e excludente do balé clássico. A provocação para esta reflexão não deixa o público incólume quando a bailarina genuinamente se esforça para se alinhar e então pergunta à plateia, com um sorriso quase maroto no rosto, se está simétrica, ou se está bonita. Faz-se onipresente o desconforto desta pergunta nada retórica que mexe diretamente com os preconceitos tácitos de quem a observa: o silêncio constrange; a fala também.

E as críticas sociais nesta obra vão muito além da pauta do capacitismo: nestas muitas camadas de significados, fica evidente a condenação social da mulher a uma imposta e suposta perfeição através de estereótipos paradoxalmente desenhados através do corpo de Silvia: a figura da bruxa, que é “deformada” e “feia”, e se arrasta com seu cajado, se opõe à princesa bailarina, que é bela e suave em cada gesto. E esta beleza estereotipada também se mostra racializada: ela obriga a bailarina a literalmente se enterrar numa branquitude para poder representar um padrão que se revela inalcançável e tóxico na prática. No final, ninguém sai ileso. Desvela-se a inútil tentativa de organizar todas estas penas, que também são nossas. Fica em cada um de nós a missão de encontrar o seu próprio balé possível e dançar com a imperfeição de nossas vidas.