DEZOITO ESTAÇÕES DE OUTONO / MARES E NUVENS FLUTUANTES
Consuelo Vallandro, Porto Alegre (RS), 07/09/2025
Ana Medeiros e Hiroshi Nishiyama celebram a dança Butoh em suas criações e trajetórias artísticas
fotos: Fábio Zambom e @aflora.imagem

Poema em forma de passos

 

dentro do espaço 

passado

presente

futuro

a árvore crescendo 

passado

presente

futuro

um salgueiro chorão 

um beijo

a bomba atômica 

caindo

ah, algo aconteceu

 

(trecho da Butoh-fu “Time Wind”, de Hijikata Tatsumi, 1986)

 

Escrevo este texto não somente como uma crítica, mas como um pequeno testemunho poeticamente proseado – como o Butoh demanda. A vida de quem vive de arte não é (nunca foi, né) muito fácil, e eu, assim como dezenas de colegas, estamos sempre assoberbados de trabalhos, abraçando funções às dúzias para dar conta de pagar as contas que se empilham nas nossas mesas. Diante dos inúmeros incêndios e leões pra apagar e vencer diariamente que a produção cultural nos apresenta, com frequência deixamos o lado artista em segundo, terceiro ou quarto plano. E assim como a dança, o circo e o teatro, o ato da escrita não automatizada exige um outro tempo, um tempo de respiro, um deslocamento da caótica corrida maluca capitalista para se olhar – e, no caso da crítica, olhar ainda o outro. Kandinsky disse que o artista deve treinar seus olhos, mas principalmente sua alma. Eu acredito que nós, da crítica, devemos treinar os olhos da alma.

Decidi retomar minhas críticas neste ano, em busca também de um resgate desta parte de mim que ama dançar com palavras e se vê amarrada ao pé de projetos e relatórios, e escolhi um espetáculo de uma colega querida na certeza de que me daria a poesia necessária neste momento para eu não me afogar no cotidiano ultraprocessado e apressado em que nos encontramos. Ana Medeiros trabalha com a dança Butoh de forma independente há uma década, e para nossa felicidade mora em Porto Alegre: fato que em si também me instigou a tecer este texto enquanto registro de celebração a memória desta trajetória, que já nos presenteou com as pérolas Caminhos Pelos Quais (2016); A Música Não Tocada (2018); O Sussurrar da Cigarra (2023); e os mais recentes Dezoito Estações de Outono (2024) e Mares e Nuvens Flutuantes (2024), sendo estas três últimas obras dirigidas por Etsuko Ohno, esposa de Yoshito, filho do legendário mestre Kazuo Ohno, um dos criadores do Butoh nos anos 1950 junto a Tatsumi Hijikata.

Em sintonia de alma e de tempo, porém distantes geograficamente, Ana Medeiros e Hiroshi Nishiyama começaram esta história com uma paixão à primeira vista depois de assistirem a apresentações de Kazuo na década de 1990 – o bailarino ainda dançava pleno pelo mundo aos 90 anos de idade. Hiroshi decidiu entregar literalmente sua vida ao Butoh após alguns cursos realizados com Yoshito, os quais lhe renderam um convite para que ele fosse estudar no estúdio Kazuo Ohno em Yokohama. O jovem largou tudo e se mudou para a cidade, aceitando um trabalho de jardineiro para se sustentar enquanto mergulhava de corpo e alma nesta linguagem ímpar junto ao clã da família Ohno, permanecendo com seu mestre Yoshito por 30 anos. Ana, por sua vez, em 2015 decidiu ir ao Japão para apreender pela raiz esta forma de dança, e assim os dois se conheceram. Por fim, em 2018, Ana trouxe “Nishi” para morar com no Brasil, mas a dupla manteve forte o laço com a família Ohno, levando para o mundo esta tradição artística que foi transmitida de pai para filho, de mestre para discípulo, e ano que vem completa 70 anos.

Assistindo em sequência a Dezoito Estações de Outono, que rendeu a Ana a indicação ao prêmio Quero-Quero de melhor performer de dança, e a Mares e Nuvens Flutuantes, me dou conta de que escolher o Butoh é sobre isso tudo: é devotar esta entrega plena, esta paixão plácida e fervorosa ao mesmo tempo, colocar-se perante os horrores da existência – como as que presenciadas com toda sua crueza na 2a Guerra Mundial pelos olhos de Kazuo quando serviu no exército japonês – e tecer uma corda para se salvar da loucura da humanidade, não emergindo, mas mergulhando mais fundo nela. Dançar Butoh é deixar de lado a compreensão diante do incompreensível e buscar refúgio na experiência do aqui e agora e no próprio ato de existência.

Quando Nishi pronuncia em japonês em meio a Mares e Nuvens Flutuantes um trecho da Butoh-fu (uma partitura de 56 palavras de Hijikata deixadas em 1986 para Kazuo e Yoshito dançarem por todas as suas vidas) diante de uma plateia brasileira leiga, poucos devem saber que ele está recitando um poema concreto em forma de passos de dança. Talvez ninguém compreenda que, entre o que foi proferido, consta o peso do verso “a bomba atômica caindo”, e que Nishi está encarnando novamente o assombro que deu origem a esta arte, mas o Butoh nos toca, nos incomoda a todos, muito além do entendimento, muito além da língua falada: ele se constrói pelo viés do nosso sentir, e nos joga nessa dimensão da pausa, do suspiro, da própria morte. A influência do ocidente, que invadia culturalmente o Japão na época, remete ao expressionismo alemão nestes corpos chamados “mortos”, que dançam pintados de branco e de olhos petrificados, com expressões de assombro que não à toa nos lembram O Grito, de Munch. A proposta de Kazuo e Tatsumi é que os bailarinos desprendam-se de sua identidade e performem na experiência da presença a liberdade de expressão ofertada pela perenidade da existência – e esta linguagem é universal, ela nos toca a todos.

O assombro também aparece na forma do absurdo – e cômico – em Dezoito Estações de Outono, quando Nishi dá sua carne a uma outra imagem completamente diferente advinda de seu mestre Yoshito: a do ser coelho, e ainda traz uma dança em completamente improvável combinação com a trilha sonora de Queen. O desencaixe entre trilha e estética causa o estranhamento e o desconforto necessários para o deslocamento do espectador. Ana, por sua vez, dança com leveza portando pendente sobre o rosto uma máscara tradicional de Tengu, espírito xintoísta que gera dualidade com sua feição ameaçadora. As dicotomias presentes neste espetáculo entre a delicadeza dos movimentos, o cômico, o grotesco e o nonsense manifestam na sua teatralidade a urgência por um mundo mais humano, de pés que flutuam no chão e nos convidam sem medo a repensar o solo sobre o qual damos os nossos próprios passos.

Destacam-se ainda alguns aspectos técnicos imprescindíveis. O primoroso uso da luz de Carol Zimmer junto a uma cortina de fog como únicos (e extremamente potentes) elementos cenográficos em Dezoito Estações acende o aspecto onírico à cena. Já o cenário de Rodrigo Shalako em Mares e Nuvens compõe de forma sublime e harmoniosa com a proposta de visualidade em preto e branco da primeira parte da obra, potencializada pela maquiagem pálida e a volumetria escultórica e sinuosa dos figurinos criados por Etsuko Ohno – os quais são um espetáculo por si só. Mares e Nuvens nos chega como uma pintura dançada, já anunciada na delicadeza da ficha técnica entregue ao público em forma de pequeno pergaminho em papel japonês washi, feito de arroz. Impossível também não mencionar que estas obras são frutos da tradição de uma família que há três gerações vem se dedicando a manter viva uma arte, considerando a participação das filhas de Etsuko, netas de Kazuo, na assistência de direção.

Como a própria diretora e figurinista dos dois espetáculos afirma, o Butoh é a verdade exposta de cada existência – por isso ele vale a dedicação destas vidas inteiras que lhe são e foram devotadas. O Butoka não tem um fazer de conta, e não se perde na busca de uma fórmula nem em termos de estética nem em termos de movimento. É nesta verdade humana e universal que esta dança nos dá a corda para nos içarmos do fluxo esmagador de viver que forçamos a ser superprodutivo. Ela nos convida a tomar este tempo, esta pausa para contemplar o mundo de uma forma outra, sem estereótipos, desconstruindo arquétipos e deixando as nossas almas livres para se salvarem dançando, mesmo que nos joguem baldes água fria no meio do caminho (especialmente para quem for assistir Mares e Nuvens!). Nietsche afirmou que não acreditava em um Deus que não dançasse. Eu humildemente acrescento: não acredito em alma que não dance. Eis o convite da vida e da morte revelado por Ana e Nishi: Dancemos!