VERTIGENS
Ruy Filho (SP), de Porto Alegre, 25/09/2015
Núcleo de Aéreos do Circo Girassol faz dois espetáculos em um
Débora Rodrigues interpreta Lady Macbeth

A poesia vence a representação

O Núcleo de Aéreos do Circo Girassol, dirigido por Dilmar Messias e coreografado por Simone Rorato, traz ao Porto Alegre em Cena o espetáculo Vertigens, pesquisa realizada nos dois últimos anos. Dividido em dois atos que se propõem distintos, os números variam do tecido às cordas, propondo o encontro estético mais amplo. No primeiro ato, o tecido serve de instrumento para a elaboração de uma cena que busca investigar Lady Macbeth, personagem da tragédia Macbeth, de Shakespeare. No segundo, por sua vez, menos figurativo, as cordas levam os performers a ocuparem a verticalidade do palco e também a parede ao fundo, invertendo eixos, para compor imagens sobre a leveza e o lirismo. No encontro entre os dois atos, algo se perde e ganha.

O primeiro momento, marcado pelos tecidos e andaimes, dialoga com a presença de Lady Macbeth em suas mais diversas faces. É como se o espectador convivesse com todos os instantes das personagens simultaneamente. Espelhos replicam tanto a imagem da atriz como da personagem, e ela passa a ocupar o discurso simbólico apropriada como signo. O que limita a ampliação dessa experiência são exatamente os momentos em que se quer representar em demasia a personagem. Ao torná-la tão evidente, elimina-se a possível simbologia e o que poderia ser um arquétipo à solidão contemporânea limita-se à representação.

Há nisso, entretanto, o valor do movimento em encontrar em Lady Macbeth o agora, em seu estado de urgência e alerta. Ao se escolher o tecido como instrumento acrobático, exige à personagem constantes estados de controle e descontrole pertinentes à narrativa original, mas pouco se soma ao que pode ser explorado como discurso. O primeiro ato, portanto, acaba por limitar aos efeitos de luz e exercícios, e menos aos sentidos propositados em sua elaboração.

Já no segundo ato, mais livre de representações que tentem dar conta de personagens e histórias prévias, o encontro entre acrobacias e narrativa se vale de maior amplitude simbólica e, por conseguinte, de poética. O uso das cordas oferece menos espetacularidade aos movimentos dos performers, mas abre mais subjetividades e leituras às imagens, trazendo o espectador para o interior do espetáculo pela necessidade de complementá-lo com sua imaginação e sensações.

Ao provocar e distorcer os limites dos eixos de verticalidade comum ao corpo, em instantes quando os performers dançam apoiados na parede, as leituras mais literais também se esvaem, e mesmo a sutileza, o uso da leveza pretendido se faz mais aberto às interpretações. O que é muito mais interessante assistir.

De todo modo, os dois atos acabam por dialogar e construir um único movimento, onde a solidão e loucura que atinge Lady Macbeth se confronta com o lírico, como se à personagem fosse possível qualquer forma de escapar ao destinado por Shakespeare, ao se valer do voo liberto de sua identidade. Se tomada a figura feminina como aquilo que Lady Macbeth representa também ao agora, a insistência pelo poder, tal qual desenhada na peça clássica, leva o ser ao seu esfacelamento, enquanto o poético possibilita o oposto, a capacidade de se livrar inclusive das estruturas, dos eixos, das amarras, das obviedades. Nesse sentido, ao provocarmos o espetáculo frente à leitura surgida do agora, resta perguntar o quanto ele conquistou à liberdade como construção estética e simbólica.

As duas partes trarão respostas próprias. Lady Macbeth, na potência de sua condição arquetípica por tantos séculos, engole o espetáculo e o coloca refém; enquanto o segundo ato, nem possível de ser completamente identificado ou nomeado, se faz um diálogo em construção poética com o próprio espectador. Para além dos exercícios, técnicas e precisão, a segunda parte realmente interessa mais e abre um amplo espaço de investigação de encontro ente o gesto, o lírico, o poético e o espectador.

 

 

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