MISERY
Thiago Silva, Porto Alegre (RS), 26/11/2023
Romance lançado por Stephen King em 1987, ganha, recentemente, uma versão teatral com direção de Eric Lenate
Foto: Leekyung Kim

Sem atmosfera não há terror

Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado

A história do terror enquanto gênero literário, cinematográfico, fotográfico, musical, teatral ou nas composições específicas das artes visuais (pintura, desenho, escultura, etc.) remonta de longa data e pode ser apreendida em diferentes períodos históricos, de maneiras diversas e plurissígnicas. O terror, portanto, não engendra apenas um modo de operar em suas narrativas, sendo, há séculos, um gênero amplo, um espaço vasto para contar e estruturar histórias e imagens. Há, evidentemente, características comuns que edificam o que pode ser apreendido como uma obra de terror, tais como a progressão de tensão, os elementos sobrenaturais, a presença do horror, o incômodo e a perturbação, o caráter dúbio das personagens, entre outros pontos recorrentes - que sempre seguem a ideia do grotesco e do horrível. Contudo, estes elementos variam em cada subgênero e modificam-se de acordo com cada época e cada sistema de crenças e valores. Um aspecto comum nas obras, entretanto, é o fato de causarem sensações extremas no público, como medo, pânico, pavor, asco e suspensão da segurança mediante uma ameaça - ainda que o leitor ou espectador saiba que está seguro diante desta experiência suspensiva.

Neste sentido, a arquitetura atmosférica das obras de terror são de extrema importância para que o pacto ficcional entre a obra e o leitor/espectador se concretize. A atmosfera da obra é algo que envolve substancialmente o terror, concedendo-lhe verdade e sustentando o fantástico de suas narrativas. Uma atmosfera especulativa que absorve quem lê ou assiste uma obra deste gênero - pensando aqui no Cinema, Teatro e Literatura, especificamente - é fundamental para que se possa adentrar o universo proposto e crer nas situações terríficas enquanto elas acontecem no plano da ficção. Portanto, para que alguém possa sentir medo de um vampiro que almeja lhe sugar o sangue, um assassino mascarado que possa lhe perseguir ou mesmo uma cena cotidiana que lhe cause repulsa e perplexidade - apenas para sugerir alguns exemplos - faz-se necessário a criação de uma atmosfera muito bem articulada, que permita a vivência plena do mundo criado e estimule o pulsar das emoções no âmago deste universo.

Na Literatura, o principal nome do terror na contemporaneidade no que tange a criação de universos ficcionais é, sem dúvida, o escritor norte-americano Stephen King. Seus livros - que já venderam mais de 400 milhões de cópias mundo afora - transitam entre o terror, o suspense, a ficção científica, o drama e a fantasia, sempre tensionando a existência humana e se valendo, muitas vezes, da literatura de gênero como um espaço para metaforizar questões políticas e socioculturais. King já recebeu diversos prêmios literários por sua obra - entre eles o Bram Stoker Awards e o World Fantasy Award - e é mundialmente reconhecido como o rei do terror. Livros como Christine, A Zona Morta, Carrie, O Iluminado, IT: a coisa e Misery foram adaptados para o cinema tornando-se sucesso de público e crítica e consagrando o autor como uma autoridade no campo especulativo. Não obstante, seus livros possuem como marca registrada uma excelente ambientação atmosférica.

Misery, romance lançado pelo autor em 1987, foi adaptado para o cinema em 1990 por Rob Reiner e, mais recentemente, uma versão teatral foi realizada e segue em temporada no Brasil. A peça, produzida pela WB Produções - produtora com sede em Vitória, no Espírito Santo - e dirigida por Eric Lenate, tal como o livro homônimo, conta a história de Annie Wilkes, mulher solitária, psicótica e amargurada que, durante uma nevasca, encontra seu ídolo - o escritor Paul Sheldon - preso em um acidente de carro no meio da neve. Imediatamente Wilkes o leva para sua casa a fim de cuidá-lo, mas, aos poucos, a personagem - que é obcecada por uma série de livros escrita por Paul - revela-se perigosa e inicia-se, então, um jogo de diálogos, obsessão e sobrevivência entre ambos.

Se, na versão cinematográfica de 1990 - com Kathy Bates interpretando magistralmente Annie Wilkes - a atmosfera de suspense, a presença do terror psicológico e a progressão de tensão contida no livro de Stephen King é impecavelmente transposta para a tela, o que acontece na montagem brasileira do livro é exatamente o oposto disso. A peça lembra King apenas em sua casca, nos nomes das personagens e na tentativa de emular os cenários que o filme de Rob Reiner projetou. Nos aspectos atmosféricos que tão bem compõem a obra literária e sua versão fílmica, contudo, não há praticamente nada a se destacar - isso porque não existe atmosfera alguma de terror, horror ou suspense no espetáculo - e praticamente todos os aspectos da obra corroboram para que isso aconteça. Trata-se de um trabalho que usa o nome de King, mas que, na prática, é um apanhado cômico e de situações absurdas que em nada lembra a essência do livro, matéria prima de sua adaptação. Na apresentação em que estive, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, o público riu do início ao fim. Na última cena - umas das mais tensas do livro - os espectadores gargalhavam. Ninguém se sentiu perturbado com a cena em que Annie Wilkes aparece no meio da plateia. Fiquei questionando-me: era, de fato, para se gargalhar dessa maneira?

Cabe ressaltar que não há problema em uma adaptação para a tela ou para o palco modificar aspectos da narrativa ou reestruturar questões de uma obra literária, se esta for a proposta do trabalho. No subgênero cinematográfico do terrir, por exemplo, o humor é aliado dos calafrios que o horror suscita. Porém, os fatores atmosféricos que engendram a narrativa de terror não são sublocados e nem desaparecem, estando apenas mesclados no alívio cômico que determinada quebra de tensão proporciona. É problemático, no entanto, quando não há sustentação atmosférica no aspecto terrífico e o riso intermitente passa a ser o principal vetor de ligação entre obra e público, sem a sustentação atmosférica que o terror necessita para se solidificar enquanto gênero. Quando isso acontece, não estamos mais diante de uma peça ou filme de terror, mas, antes, de uma obra de comédia que possui momentos de inquietação. Nenhum problema, se a obra for classificada como tal. Todavia, não é o caso de Misery dirigido por Eric Lenate, que usa o nome de Stephen King como grande marca de sua produção e se projeta como um espetáculo de suspense/terror para o grande público.

Há diversos problemas que impossibilitam a existência de uma atmosfera de terror no espetáculo e, ainda que o elenco composto por Mel Lisboa, Marcelo Airoldi e Alexandre Galindo esteja muito bem dentro da proposta específica levada para o palco (tipos cômicos e caricatos em uma situação desesperadora), o engendramento da encenação e as escolhas de direção afastam qualquer possibilidade de imersão no campo especulativo e de gênero. E isso já começa no próprio registro de atuação do elenco. Excessivamente cômicos, os personagens da peça Misery em nada lembram a humanidade e a complexidade das personagens do livro de King. A Wilkes de Mel Lisboa, por exemplo, é psicótica desde seu aparecimento em cena, não havendo espaço para a progressão da loucura da personagem ao longo da peça como acontece no livro - ainda que as situações de tensão evoluam gradativamente na dramaturgia. Marcelo Airoldi traz para a cena um Paul  Sheldon que constrói suas nuances nas piadas que direciona para sua algoz e Alexandre Galindo, por sua vez, interpreta um xerife Buster carregado na comicidade escrachada, caricatural, com um modo de falar, se portar e gesticular que arranca gargalhadas altas do público toda vez que entra em cena.

O elenco, vale lembrar, está muito bem naquilo que se propõe. São tipos que dialogam com a encenação, fazendo o que é preciso ser feito. Seu trabalho está alinhado com o que é o espetáculo, tendo em vista que não se trata de uma peça de terror, suspense ou algo que o valha. Trata-se de uma comédia que flerta com o terror nas emulações de sua superfície. Seja na artificialidade do cenário e na ultra exposição de sua dinâmica de movimento; nas projeções audiovisuais - que mais distanciam do que trazem o público para dentro de uma atmosfera de terror; no tempo longuíssimo na troca de algumas cenas, sobretudo na passagem de tempo; no uso de microfones e nas falhas que eles constantemente apresentaram na apresentação; e, principalmente, nas entradas completamente incabíveis e descartáveis dos contra-regras em cena (um deles entrou apenas para largar um copo d’água em uma mesa, destruindo qualquer resquício de crença naquele universo, destruindo o pacto terrífico de gênero), todas as escolhas técnicas rejeitam a possibilidade de se solidificar uma atmosfera de terror no palco, seja ela qual for. É Teatro, é ficção, pode-se experimentar. Mas sem uma atmosfera bem estruturada não há terror sob nenhuma hipótese.

Particularmente problemática, neste sentido, é a cena em que Annie prepara um jantar para Paul enquanto este tenta apagá-la colocando sedativos em sua bebida. Tanto no livro de King quanto no filme de 1990, esta cena é altamente tensa, uma vez que trata-se de uma das únicas chances que Paul tem de fugir de seu cativeiro. O leitor ou espectador come todas as unhas, torcendo para que o plano de Paul dê certo. Na peça brasileira, no entanto, a cena é de um pastiche quase inacreditável. Não bastasse a dramaturgia de Claudia Souto e Wendell Bendelack - responsáveis pela adaptação para o português -  amalgamar piada em cima de piada durante todo o ato, a Wilkes de Mel Lisboa aparece na cozinha vestindo uma roupa de enfermeira que simula uma fantasia sexual. Sua entrada, novamente, arrancou gargalhadas do público presente - tornando a cena algo próximo de um sitcom pastelão (várias cenas da peça aproximam-se disso, inclusive; poderia-se dizer que todas as que o xerife Buster aparece, por exemplo). A partir daí, nada mais pôde sustentar a peça como um espetáculo de terror, suspense ou algo do gênero.

Vale mencionar que trata-se da primeira direção do ator, diretor e coreógrafo Eric Lanate - que possui prêmios importantes em seu currículo como o Sheel, o APCA e o Aplauso Brasil - no campo do terror e nota-se a ausência de um mergulho profundo no gênero. Nota-se as marcas de outras linguagens, de outros repertórios bem articulados.  Mas não o terror. A trilha sonora de L. P. Daniel é um ponto que chama bastante atenção por ser, talvez, o único elemento que esboça verdadeiramente uma propensão atmosférica para o gênero dentro do espetáculo. Seu aspecto incidental pontua a tensão e o suspense, mas não consegue sustentar nenhuma das duas coisas, pois, saindo do plano da sonoplastia, ambos os aspectos são apenas sugeridos e não conseguem ser concretizados no contexto da encenação - nem mesmo o desenho de luz de Aline Santini consegue dialogar e traçar cruzamentos com a proposição diegética dos elementos sonoros.

Misery, contudo, vem fazendo bastante sucesso pelo Brasil afora e já levou um público considerável ao Teatro. Tem uma produção louvável, uma boa caracterização cênica e consegue cooptar bem o livro homônimo para a manutenção de suas temporadas pelo país. Da atmosfera criada por Stephen King, entretanto, a peça tem pouca coisa. Mais do que isso: de um desenvolvimento atmosférico de terror, o espetáculo não chega nem perto. Isso nos leva a uma reflexão bastante pautada na última década - especialmente pelo cinema de horror e as investigações teóricas a respeito dele- sobre a suposta inferioridade deste gênero no campo da arte, completamente rechaçada por obras que não devem em nada a nenhuma outra, seja qual for o aspecto investigado. O terror é complexo e rico e sua história evidencia isso. Por isso, não basta querer fazer uma obra de terror. É preciso entender profundamente do que se trata para não incorrer no erro de reproduzir um discurso que não condiz com a realidade.