CRIA
Carlinhos Santos, Porto Alegre (RS), 04/06/2019
Trabalho aponta um momento seminal para os novos contextos da dança contemporânea brasileira
Cria volta ao Estado de 20 a 28 de agosto pelas cidades de Lajeado, Carazinho, Passo Fundo e Jaguarão foto: Renato Mangolin

Crias do funk reinventam a dança contemporânea brasileira

No princípio, com a batida em volume alto, olha-se o funk de frente. Como nas pautas de uma partitura, um estudo e uma analogia às cartilhas do clássico. Mas essa perspectiva frontal se rompe pelo 3D dos passos expostos no espetáculo Cria, da Cia Suave, do Rio de Janeiro, que fechou a programação do Palco Giratório SESC-RS, dia 25 de maio, no Teatro Renascença. O trabalho é um momento seminal para os novos contextos da dança contemporânea brasileira. A reunião de corpos “periféricos” organiza um novo foco para leitura da cultura coreográfica no país.

Se o Grupo Corpo assumiu para seu balé os cortas-jacas e requebros em corpos-partituras sobre brasilidades, e Lia Rodrigues borrou as margens corporais, reunindo corpos-manchas humanas em gambiarras de movimentos e marés dançantes, Alice Ripoll esboça um entendimento do funk como afirmação e potência de como esses trânsitos das linguagens dos bailes, dos passinhos e dos requebros, das bundas e das saídas desencontradas, atualizam o repertório da dança brasileira.

Cria afirma o quadro no qual Paola Berenstein Jacques esboça o conceito da estética da ginga, mas vai além. O trabalho aprofunda o mergulho na perspectiva do entendimento de que o corpo urbano contemporâneo ganha fôlego ao requebrar e desencontrar-se em desníveis, volteios e reviravoltas que instauram um percurso e, ao mesmo tempo, o desestabilizam, envolvido pela trilha funkeira, nas rodas de rap, nas ruas, subúrbios e morros cariocas. Um corpo-favela ancorado no outro corpo, apoiado num terceiro, acolhido pelo seguinte, imbricados na possibilidade de ser um em muitos. 

Uma paisagem imagética, aliás, igual e profundamente aliada às informações já postas sobre o país verde-amarelo aqui e fora daqui. Só que agora não é mais a Zona Sul Bossa Nova ou a Lapa boêmia que anuncia nossas vaidades culturais. A nova informação vem da Zona Norte e da Baixada, onde o sol de quarenta graus do dia expande o calor e o suor para os barracões de bailes noturnos. Nesse contexto, Cria é solar e freneticamente neon ao mesmo tempo. É o lurex, o veludo molhado, o strech e o brilho dos paetês dos figurinos que lhe envolvem e também lhe constituem com informações sobre o luxo Made In China que aporta no Mercadão de Madureira.

O passinho e a dancinha, inovações internas na linguagem do já “for export” movimento brasileiro funkeado, são pontos de partida para que a coreógrafa e os bailarinos oriundos de diferentes regiões do subúrbio carioca estabeleçam novas derivas coreográficas. Mais solta para liberar movimentos estabelecidos do passinho, a dancinha vai acelerando a pulsação corporal por causa do batidão em 150bpm, liberando e exigindo mais agilidade para a técnica. Coisa que a moçada sabe resolver muito bem no corpo, escolada pelo treinamento na pista.

É essa a potencialidade do encontro de informações diversas, incluindo o afrofunk, beat box, contatos e improvisações das quebradas. É esse “sobrevivendo na ginga do corpo na favela horizontal urbana ou nos morros com um mar de concreto e asfalto como vista” que deve ser saudado. Cria confirma aquele papo de dança que se reorganiza o tempo todo a partir das informações do ambiente em que está: corpomídia, corpo de trocas, corpo de urgências, corpo de recomeços.

Na habilidade de desconstruir esses passos do funk para tentar olhá-los “por dentro”, a coreógrafa insere e reorganiza estes dados como material de dança. Aliás, esta não é uma novidade na cena brasileira. Mas Cria renova este contexto e essa possibilidade, assumindo e abraçando o que Michel Mafessoli chama de cultura do gozo. A despeito de muitos discursos contrários, preconceituosos e excludentes ao funk, Alice Ripoll e os bailarinos todos exaltam o corpo como potência de vida e prazer na contramão de uma paisagem de enfado, cansaço e decepção pelo contexto socioeconômico local e global. 

A habilidade de cruzar cenas e contextos de dança, a inserção de narrativas pessoais, a decupação, digamos assim, dos textos do funk putaria como um novo discurso são dados significativos – afinal, quando vamos assumir a buceta, a bunda e o caralho?! O trabalho também é hábil na construção de cenas sobre extermínios em sequência. Mostra e grita pelas mortes cotidianas, mas afirma o nascimento de novas crias – “temos muitas, pois vocês matam algumas”, avisa um texto do programa da companhia.  

Essas leituras possíveis contribuem para que Cria se apresente como um manifesto contundente sobre a emergência de discursos de ódio e intolerância que, na metáfora possível, precisam ser rechaçados com a insistência da vida. Política, dança e poesia imbricados e atravessados por suas próprias instâncias éticas e estéticas. Bundas que desdenham, bundas que desbundam. E há ainda a beleza dos corpos negros (herdeiros das diásporas, em eterno confronto com o discurso hegemônico branco, eurocêntrico) e sua exuberância rítmica, a afirmação do corpo em trânsito, do corpo trans que bate cabelão e diz que “yes, we like money” – mas quem não?! Diria eu: Yes, we have quadril (sic)!

E, dado ainda mais precioso, tudo é feito com alegria vigorosa, sem esconder a cara para afirmar seu lugar de fala e de dança, em gestos atravessados por cálidas confissões sobre afetos e laços. Crias do funk que fazem a dança contemporânea brasileira reorganizar seu código genético para novas trocas, combinações e variações de passinhos e dancinhas. 

Depois de arrebatar o público no encerramento do Festival Palco Giratório em Porto Alegre, Cria volta ao Rio Grande do Sul para cumprir temporada de 20 a 28 de agosto pelas cidades de Lajeado, Carazinho, Passo Fundo e Jaguarão. A seleção da Cia Suave pela curadoria nacional desta edição ratifica a importância do Palco Giratório, realizado pelo SESC, no mapeamento e na atualização do repertório de informações que afirmam a qualidade e a contundência das artes cênicas brasileiras.  

 

Carlinhos Santos integrou a curadoria dos espetáculos gaúchos do 14° Festival Palco Giratório em Porto Alegre