Suíte Branca e Dança Sinfônica
Soraya Belusi (MG), em Belo Horizonte, 09/09/2015
Grupo Corpo traduz 40 anos de existência em espetáculos opostos e complementares
"Suíte Branca", criação de Cassilene Abranches, projeta futuro do Corpo

Opostos complementares

Em Triz (2013), o Grupo Corpo trajava figurinos em grafismos preto e branco que pareciam fundir os corpos, como se estes fossem um só e depois se multiplicassem. Partes que se complementavam e que se dividiam. Em Suíte Branca e Dança Sinfônica, criações que estrearam no dia 5 de agosto, em Belo Horizonte, o preto e o branco que vestiam a montagem anterior do coletivo mineiro assumem cores próprias. Suíte Branca com a assinatura de Cassilene Abranches, e Dança Sinfônica, com a marca de Rodrigo Pederneiras, traduzem uma forma de o Corpo ver o próprio Corpo – desmembrados um do outro, nem por isso menos complementares.

Suíte Branca e Dança Sinfônica foram concebidos para a comemoração dos 40 anos da companhia. Rodrigo Pederneiras, coreógrafo do grupo, convidou sua ex-bailarina Cassilene Abranches para criar Suíte Branca, convocando Samuel Rosa para a composição da trilha sonora. Rodrigo se dedicaria ao processo de criação de Dança Sinfônica, em que Marco Antônio Guimarães e seu Uakti se encarregariam da música, gravada pela Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.

Se Suíte Branca é todo clean, de um zen quase nipônico, Dança Sinfônica é carregado nas tintas dramáticas. Os contrastes se sucedem. A beleza calma do branco é inundada depois pela exuberância do preto e do vermelho. De um lado, o espaço vazio e nu de uma tela a ser preenchida; de outro, uma cortina fechada e iluminada que parece esconder o violino que soa de trás. Enquanto um encanta pelo frescor, o outro demanda postura solene. Uma gente de tênis, bermuda, moletom, meião e camiseta; outra turma vestida com a suntuosidade do veludo. Um é casual, o outro é de gala. De um, prazer estético; de outro, o emocional. Se Suíte Branca convida o espectador a se colocar diante do abismo do novo, Dança Sinfônica exerce o direito de tornar a beleza arrebatadora. Um é feito de futuro, o outro revisita o passado.

Notas de um violão com levada folk-psicodélica anunciam o que está por vir em Suíte Branca. Um corpo que se distingue de seu fundo pelo movimento, como se rabiscasse o vazio. Este, em um movimento de “mutação”, apresenta-se ora como papel, com suas dobras e amassaduras, ora como parede, ora montanha, ora vale ou geleira; paisagens visuais provocadas pela genialidade da luz de Paulo e Gabriel Pederneiras, criando fissuras no tempo e no espaço, atravessadas pelos bailarinos.

Desde 2001, quando entrou para o elenco da companhia, vinda de São Paulo, para integrar o elenco de Santagustin, Cassi (como Cassilene é chamada pelos amigos e companheiros de coletivo) registrou no próprio corpo não só a maneira de dançar as coreografias que Rodrigo cria, mas também a maneira como ele as cria. Quando se observa Suíte Branca em busca de proximidades estilísticas entre o trabalho dos dois, são reconhecíveis os traços herdados – como quando se compara um filho recém-nascido com os pais para ver com quem ele se parece mais –, mas também perceptíveis as diferenças.

Cassi fala a língua de Rodrigo e seu Corpo, mas a pronuncia com seu próprio sotaque, um “mineirês” contemporâneo e urbano, que vai ao encontro da sonoridade sofisticada/alternativa/humorada que propõe a trilha composta por Samuel Rosa e o Skank. Se são identificáveis as quebras de quadril – e de outras partes do corpo –, não há mais nelas a mesma sinuosidade; estão menos curvas, mais retas e repartidas.

Em alguns momentos de Suíte Branca, as cenas parecem se fundir entre a entrada de um bailarino e a saída de outro, denotando o DNA herdado de quem tem notável habilidade em construir e desconstruir as formações no palco – transformando trios em duos, que viram solos, que voltam a ser trios, e assim por diante. Em muitos outros, o corte é seco, com vazios entre as partes, silêncios e breves escuros, como se evidenciando o fim de uma paisagem sonora-visual-corporal para o começo de outras, como uma seleção de trechos e composições autônomas.

A coreografia lança um jogo permanente entre planos e direções, como se os bailarinos fossem ao chão não em busca da queda, mas do impulso para subir. Um desequilíbrio que se atrai pelo solo com a mesma intensidade com a qual se mantém afastado dele – como a nota suspensa de uma guitarra distorcida.

Dança Sinfônica é um convite ao belo e ao emotivo. Carrega consigo a memória do que foi e do que poderia ter vindo a ser – um mosaico de movimentos, esboços corporais, materiais de processo não usados em outros trabalhos que foram recriados, ganhando uma nova dramaturgia. É como se o Corpo fizesse uma reverência à sua própria história, em que o passado é convidado a participar das festividades. Mulheres de vermelho, homens de preto. A trilha sonora é protagonista, criando ambientes sonoros de contornos quase épicos, à altura da grandeza da ocasião.

O espaço emoldurado pelas pesadas cortinas de veludo revela ao fundo um painel com fotos que fazem parte da história da companhia. Assim como a iluminação de Paulo Pederneiras não permite que as imagens sejam totalmente visíveis isoladamente, na coreografia é possível reconhecer um trecho de trabalho anterior aqui, uma autocitação ali. Esse exercício de “adivinhação” para os espectadores assíduos do repertório do grupo progressivamente cede lugar à afetação física e emocional provocada pela narrativa que Rodrigo apresenta.

O movimento de mão-dupla entre o que ficou para trás e o que está adiante se traduz no corpo dos bailarinos em impulsos que começam em uma direção e levam à outra.

A força dos movimentos em grupo estabelece um contraste ainda maior com a fragilidade dos pas de deux (de Sílvia Gaspar com Edimárcio Júnior e Helbert Pimenta) que rompem aquela pulsão quase trágica que o som cria no espaço.

Nas duas montagens, a mesma figura de Sílvia Gaspar aparece a flutuar, imagem-síntese da complementaridade entre elas. Em Suíte, ela paira como se caminhasse no ar, passando de braço em braço entre os bailarinos. Em Dança, seu corpo vulnerável precisa ser amparado, sustentado para não cair. A leveza de outrora carrega agora todo o peso da tristeza de um mundo. Resta o amparo do outro. O acolhimento do colo. Os pés não podem tocar o chão quando não se consegue mais ficar de pé.

Rodrigo Pederneiras concebeu "Dança Sinfônica" para revisitar passado do Grupo Corpo