SALINA (A ÚLTIMA VÉRTEBRA)
Michele Rolim (RS), de Porto Alegre, 25/05/2017
Produção da carioca Amok Teatro mostra uma África ancestral na qual a protagonista luta por ser dona de seu próprio destino
Espetáculo coloca em cena um elenco com todos os atores negros, resultando em um trabalho que foge do imaginário branco ocidental de uma África Foto: Claudio Etges

A África delas

O Amok Teatro já é bastante conhecido dos gaúchos. O público de Porto Alegre já assistiu a Savina (2006), Dragão (2008) e Kabul (2009), todos eles espetáculos que pesquisam diferentes tradições e culturas.  O grupo carioca é reconhecido pelo excelente trabalho de ator, fruto da técnica desenvolvida ao longo de 18 anos, aliado a figurino, cenário e luz impecáveis e uma direção precisa de Ana Teixeira e Stéphane Brodt . E, principalmente, pela incrível capacidade de contar histórias. Dessa vez, de uma África ancestral.

Salina (a última vértebra) coloca em cena um elenco de atores negros, no total cinco homens e cinco mulheres. O trabalho já teria méritos apenas por isso, ao provocar um deslocamento no olhar do público, habituado a ver negros em papeis estereotipados ou distantes do protagonismo. O processo de seleção do elenco buscou atores de diferentes partes do Rio de Janeiro para interpretarem reis, rainhas, guerreiros – enfim, uma civilização. O resultado disso é uma encenação que foge do imaginário que o branco ocidental tem da África.

O texto foi escrito em 2003 pelo francês Laurent Gaudé (1972), mundialmente famoso pelas montagens dirigidas pelo griot e ator malinense Sotigui Kouyaté (1936-2010). O grupo Amok é o primeiro a montar um texto desse autor no Brasil. Salina conta a saga da personagem que dá nome ao espetáculo, interpretada por Ariane Hime. Casada à força e violentada por seu marido, Salina dá à luz Mumuyê Djimba (André Lemos), um filho que ela detesta tanto quanto o pai. Acusada de deixar o esposo morrer num campo de batalha, Salina é banida de sua cidade. Exilada no deserto, alimenta seu desejo de vingança. De sua ira, nasce Kwane M’krumba (Reinaldo Junior), que trava uma guerra com seu irmão, Djimba, até que uma reviravolta acontece.

Uma história, infelizmente, atemporal e universal, que trata de exílio, ódio, perdão e, acima de tudo, do sistema patriarcal ao qual as mulheres são submetidas. A força do espetáculo está justamente em devolver o protagonismo e as rédeas do destino às mulheres. Para alcançar sua independência, Salina experimenta duras provações, tais como casar-se à força, ser violentada e ter um filho dessa violência, enterrar seu outro filho.  Sua vontade de viver é resgatada por outra mulher, não por um homem. Ao longo do processo de amadurecimento de Salina, estabelece-se o reconhecimento do outro até finalmente desconstruírem-se os mecanismos de opressão. Em muitas montagens da Amok Teatro, percebemos em cena o conceito da alteridade, ou seja, a capacidade de “ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro”.

Destaca-se também o desempenho da oralidade, seja pela intensidade do gestual presentificada no corpo do ator, que auxilia na contação da história, seja pela técnica vocal, ou ainda pela emoção evocada ao pronunciar as palavras.

Salina faz parte do projeto A África em nós (ao lado da peça Os Cadernos de Kindzu, outra atração do 12º Festival Palco Giratório SESC/POA), que investiga formas narrativas e possibilidades de contar uma história, buscando inspiração nas tradições orais africanas. A diretora Ana Teixeira explica que, por conta da vastidão e da complexidade do continente africano, o ponto em comum entre diferentes culturas do continente é a oralidade. A partir disso, o grupo aprofundou ainda mais sua pesquisa a respeito das formas de se contar uma história em cena, sempre acompanhadas da música, muito presente na África.

A narrativa da história é conduzida em um tom cerimonial. A cena é mostrada aos espectadores como um espaço privilegiado e sacralizado de encontro, tanto pela disposição dos atores em roda aberta, na tradição de se formar um círculo para se contar uma história, quanto na musicalidade presente ao longo de toda a peça na figura do multi-instrumentista Fábio Simões Soares.

Salina é a África ancestral em suas cores, formas e sons, mas também é a África onde ser mulher significa estar prisioneira de seu próprio corpo, que é administrado por uma sociedade patriarcal e machista. O progresso desse continente muito se deve às mulheres, mas ainda há muito o que reconhecer.  Em muitas regiões da África, mulheres seguem desafiando convenções morais sobre o feminino.  Que a arte também sirva para problematizar o imaginário ocidental sobre a mulher africana.