VILLA + DISCURSO
Renato Mendonça (RS), de Salvador, 30/12/2016
Teatro político do chileno Guillermo Calderón foi destaque na programação do FIAC 2016
Na foto, Francisca Lewin, Macarena Zamudio e María Paz González. No FIAC 2106, Maria Fernanda Videla substituiu Macarena

Onde mora o Mal?

Nos dias brasileiros de hoje, a luta política se desdobra em operações policiais ostensivas, votações supremas, grosseria exponencial nas redes insociáveis, cobranças implacáveis de posicionamentos eternos de ideologias inquestionáveis. Ė o excesso de adjetivos, a ausência de meios-tons, a eugenia política, o confronto de tribos coesas e inconciliáveis, a aniquilação do que não sou. Sem espaço para as vacilações do eu, nós investimos braços dados, armados ou não. Um confronto sem solução? Sem prisioneiros? Bem e Mal são valores fechados? Somos puros e imunes ao que consideramos abjetos nos adversários?

Guillermo Calderón, que esteve em cartaz no FIAC 2016 com a peça Villa e a leitura dramática Discurso, apresentadas em sequência, pode nos ajudar, se não a reduzir o volume, ao menos suavizar o contraste e aumentar o brilho do quadro social. O dramaturgo, cineasta e diretor chileno transfere as grandes, complexas e contraditórias questões políticas para o palco das relações individuais. No microterritório habitado pelo tu e eu, da quase impossível convivência do nós, ele não propõe soluções, mas ajuda na formulação das perguntas certas.

Calderón armou um díptico para mergulhar nos traumas causados pela ditadura militar liderada por Augusto Pinochet (1973-1990), que a sociedade chilena ainda hoje luta para absorver. O artista de 35 anos afirma que o verbo absorver é insuficiente e insatisfatório para lidar com um passado que semeou violência em todos os níveis da sociedade chilena, contaminando até relações familiares e pessoais. Qual verbo daria conta de tanto? Esquecer? Perdoar? Sublimar? Vingar-se? Esconder? Reverenciar? Discutir? Calar? Ignorar?

A primeira parte do díptico é a peça Villa. Em cena, algumas cadeiras, uma mesa com uma maquete, mais adiante outra mesa com jarra de água e muitos copos. Uma trinca de personagens chamadas Alejandra discute qual destino devem ter as atuais ruínas da Villa Grimaldi, um dos mais famosos centros de tortura e de extermínio do regime que derrubou Allende. Envolvidas em uma guerra particular, as três se revezam em diferentes opiniões sobre o que deve ser feito com a Villa: construir um museu contemporâneo de paredes imaculadamente brancas ou reconstruir nos mínimos possíveis detalhes a casa do terror? Estetizar a violência ou esfregá-la na nossa cara? Manter as feridas abertas ou apontar para uma conciliação? Pensar no conforto das vítimas ou na denúncia dos carrascos? Não são por acaso tantas perguntas – Villa é um crescendo de conchavos e de suspeição. É incômodo: as personagens contemporâneas discutem sobre algo do passado, concordam integralmente na desumanidade que o prédio abrigou, mas parecem carregar, ainda que em doses mínimas e sutis, o vício da pequena traição que normalmente acompanha um regime de força.

A maquete da Villa Grimaldi ocupa o centro da cena e das discussões. A partir dela, Calderón parece sugerir que o Mal independe de escalas, estabelecendo-se em um país, em uma sala de reuniões corporativa, no encontro de cidadãos para decidir sobre um imóvel público, no palco do Teatro Gregório de Mattos, em Salvador. O invólucro de plástico que envolve a maquete materializa a provocação: o Mal pode ser objeto de observação? Estamos protegidos dele? Há risco de contaminação?

As ótimas Maria Fernanda Videla, Francisca Lewin e Maria Paz González amplificam essas contradições ao estabelecerem fricção entre suas atuações naturalistas e o tema monstruoso que debatem. A herança maldita de estupros, execuções e desconfiança busca espaço em meio a uma discussão que parece debater superficialmente como tratar a memória do Mal. Uma tarefa que, em verdade, não tem fim. O Mal não é objeto de museu ou de parque temático: ele veio para ficar, ele existe e resiste desde sempre, e sua exposição e aceitação como influência em nossa vida é o contraveneno possível que dispomos. Não se trata de relativizar a responsabilidade do criminoso, mas de assumir que o Mal, em suas diferentes formas e doses, é um companheiro indesejável de viagem a quem devemos combater e dedicar o máximo de atenção. O conflito resta em aberto, cada um por si na guerra pela sobrevivência emocional.

Poucos minutos separam o final de Villa e o início de Discurso, um texto que imagina o que a ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet, poderia ter dito a seus compatriotas quando encerrou seu mandato, em 2010. O formato é de leitura dramática - as mesmas atrizes de Villa desempenham um jogral que embaralha frases de Bachelet com ficção, e o fazem com indisfarçável afeição pelas tiradas espirituosas e irreverentes que a ex-presidente endereça inclusive a si mesma.

Apesar de Villa ser apresentado isoladamente em alguns festivais, no caso do FIAC 2016, ele teve a companhia de Discurso. E a quase justaposição dos dois merece ser comentada, pelas relações que levanta. Em Villa, são três discursos que se digladiam, expõem contradições suas e dos outros, a “plateia” são os outros atores em cena. Em Discurso, há um discurso apenas, que nos coloca na condição de cidadãos chilenos em situação de despedida. O talento de Calderón como autor dramático desperta empatia imediata por Bachelet, ainda que, repito, as falas não se furtem à autoironia e a apontar deformações que a realidade impõe ao socialismo utópico.

Apesar de a personagem Bachelet em alguns momentos se mostrar vaidosa além do ponto e não esconder suas ambiguidades, vacilações, frustrações e concessões que alguém de esquerda experimentou ao chegar ao poder, a convicção residual é que a personalidade Bachelet passa quase incólume pelo moedor de decências também conhecido por política.

Ainda que reconheça a qualidade e o timing do texto dramático de Discurso, confesso que preferia ter ficado apenas com Villa. O tom de reverência da segunda parte do díptico, e escrevo isso reconhecendo a importância que Michelle Bachelet inegavelmente teve e tem para o Chile, me sugeriu que soluções personalistas podem resolver questões políticas maiores. Sem entrar na discussão de que em uma política real não se pode prescindir do poder catalisador das lideranças, ou de que o “discurso” de Bachelet rejeita messianismos, ainda prefiro ficar com as dúvidas irresolvidas da Villa do que com a idealização do Discurso. Vai ver essa discussão está dentro do jogo de Calderón. Se estiver, bingo.