MEDEAMATERIAL
Patrick Pessoa (RJ), em Porto Alegre, 18/08/2015
Alexandre Dill (RS) fica mais próximo de Eurípides do que de Heiner Müller
Fernanda Petit e Vinicius Meneguzzi estrelam montagem em cartaz no Teatro do Goethe, em Porto Alegre

Psicomedea

À esquerda do palco, uma piscina retangular, que ora é uma cama de casal, ora um ringue. Que cama de casal não é por vezes um ringue? À direita, um aquário, com um enorme peixe emborcado dentro dele. O peixe busca desesperadamente um contato com o resquício de água que lhe poderia garantir a sobrevivência. Ao fundo, duas portas, estranhamente abertas, como se ainda houvesse saída. À frente, duas figuras humanas: o homem, apesar do terno excessivamente elegante, tem o pé acorrentado a uma pedra; a mulher, em um imponente vestido rabo de peixe, não por acaso re(n)dado, é subjugada por ele, como se fosse sua cadela. Ela traz nas mãos dois pequenos sacos de água, cada qual guardando um peixinho. Ambos os sacos contém pequenos furos. Jasão, Medeia e os filhos: um belo retrato de família.

 Eis a promissora imagem inicial do espetáculo Medeamaterial, adaptado da obra de Heiner Müller e dirigido por Alexandre Dill, que cumpre curta temporada no teatro do Instituto Goethe de Porto Alegre. Como o título da peça indica, trata-se de uma apropriação da apropriação subversiva que Müller empreendeu de um material arcaico: a tragédia Medeia, de Eurípedes.

A compreensão da peça de Dill depende de uma análise do modo como ele interpretou e transpôs para a cena o trabalho de Müller. Ainda que a exigência de uma fidelidade ao original não possa ser postulada a priori, é interessante indagar até que ponto a escolha da obra de Müller foi adequada àquilo que o diretor pretendia realizar. Dentre os aspectos a considerar, dois merecem destaque. O primeiro diz respeito ao compromisso ético assumido por Müller. Sua obra, precursora do assim chamado teatro pós-dramático (ver o texto “Medeamaterial e o teatro pós-dramático”, na seção intitulada “Cena teatral” deste site), pensa a tradição dramática ocidental como um material inesgotável que, ao ser ressignificado para iluminar a situação contemporânea do mundo, não pode mais pretender apresentar uma fábula com princípio, meio e fim. Para o dramaturgo alemão, o teatro não deve ter a pretensão de corrigir a opacidade do real através da criação de fábulas reconfortadoras. Esse seria o papel da religião, não da arte. Tal compromisso tem a ver também com a proposta pedagógica de seu teatro, fortemente inspirado pelas peças de aprendizagem de Brecht: treinar os espectadores para exercitarem sua liberdade de produzir sentidos sempre precários em meio a um mundo carente de referências transcendentais. O segundo aspecto diz respeito às características propriamente estéticas do texto de Müller, que, ao romper com a regra neoclássica das três unidades (ação, tempo e lugar), exige um tipo de encenação em que a materialidade de elementos cênicos, outrora secundários face ao primado absoluto da fábula, seja concretamente valorizada.  

No que diz respeito a esse segundo aspecto, é inegável que o espetáculo de Alexandre Dill pretende seguir a cartilha do teatro pós-dramático. A ênfase na construção de imagens, na performance corporal e gestual dos atores, no erotismo e na animalidade – é eloquente a cena em que Jasão beija até sufocar o enorme peixe que se encontrava no aquário, a ponto de engasgar, a ponto de vomitar –, a utilização de uma luz ora expressionista ora paródica, o cuidado na disposição dos objetos em cena, e sobretudo a insistência na ostentação de certos materiais como água, pedra, cuspe, esperma, terra: está tudo lá.

O problema é que a ostentação da materialidade de certos elementos cênicos torna-se puro efeitismo quando o imperativo ético que alimenta o teatro de Heiner Müller não é respeitado. O pecado capital de Alexandre Dill foi o fato de não ter suportado a opacidade do texto de Müller, fiel à complexidade do “mundo abandonado por Deus” (Lukács), e de ter querido corrigi-lo, linearizando o seu enredo e construindo uma fábula de moldes aristotélicos. Em vez de preservar a abertura do original, que é uma desconstrução da tragédia de Eurípides permeada por elementos épicos que falam da situação política, cada vez mais inapreensível, de nosso próprio tempo, o diretor desconstrói a desconstrução de Müller, reconstruindo o enredo linear da peça de Eurípides em chave psicológica.

Retomando agora a bela imagem com que Dill abre o seu espetáculo, veremos que todos os seus elementos se articulam em uma totalidade de sentido que não faz jus à proposta étio-política do teatro de Müller. A pedra acorrentada ao pé de Jasão (Vinicius Meneguzzi) é o fato de ele se sentir preso a Medeia (Fernanda Petit), de querer libertar-se da primeira esposa em prol de um casamento melhor com a filha do rei de Corinto. O figurino do ator, um terno excessivamente chique, de mafioso ou empresário, reforça a sua identificação como um homem pragmático. Medeia, por sua vez, que permanece praticamente calada ao longo de toda a primeira parte do espetáculo, servindo quando muito objeto sexual para Jasão, é a mulher que foi fisgada (como seu vestido rendado com cauda de peixe dá a entender) por um instável conquistador e que agora, abandonada por seu homem, vagueia em cena como aquelas almas que só recuperam a consciência no Hades depois de beber o sangue de algum animal sacrificado.

Cenicamente, Medeia é também representada pelo grande peixe que mal consegue respirar fora de seu ambiente natural, a água ou o casamento, e que acaba por ser engolida, vomitada e finalmente destroçada por Jasão. Por mais que a atração sexual entre os dois seja sublinhada no espetáculo, com cenas de coito, masturbação e sexo oral, essa sexualidade aparentemente selvagem nunca transcende os limites de um enquadramento psicologizante. O mesmo enquadramento que justifica a vingança de Medeia, na cena em que mata os seus dois peixinhos (ou filhos) para se vingar de Jasão, e também o retorno à cena de um Jasão compungido, com uma dispensável máscara de tristeza.

O desfecho do texto da adaptação, quando a atriz afirma que “não sou Medeia”, é inconsistente com a plena identificação entre atores e personagens que preside toda a encenação. Uma identificação que é reforçada por padrões de interpretação excessivamente (melo)dramáticos, por um uso da banda sonora apenas ilustrativo, que tenta manipular afetivamente os espectadores, privando-os de sua liberdade hermenêutica, e por um modo de elocução do texto de Müller que tende a rebaixá-lo a uma mera atualização do enredo da tragédia de Eurípides, roubando-lhe a sua verdadeira materialidade – a materialidade da palavra, ausência mais sentida na presente encenação.